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Um vulto da Faculdade de Direito

Euclides Neto

A TARDE - Salvador - BA - 1991

 

Em 1945, após o vestibular, como se ocorresse um crepúsculo matutino, eis-nos na primeira aula. O mestre, Nestor Duarte: aparência de sertanejo dos viventes de “Gado Humano”, da sua autoria. Mas a palma da mão mostrava uma maciez rosada de menino, gesticulando. Traje despreocupado. A fivela do cinto fechada abaixo do umbigo, malandramente. Voz rouca, tropeçando, às vezes, no galope do raciocínio.

Já provocando — e ele dizia-se um provocador —, em tom de agressão, causando o primeiro impacto, sacudia o resto da nossa puberdade, agora perdida completamente. Rompeu-se a placenta que ainda nos envolvia:

— Leram a Comédia Humana? Se não leram, voltem ao ginásio.

Estávamos em outro mundo. Fez-se uma claridade intelectual. Nascíamos novamente.

Daí para diante foi o trabalho de lavar as untuosidades da nossa formação, desnudando os enigmas da Filosofia do Direito. Preparando-nos para as aulas de Nelson Sampaio, Barros Porto, Josaphat Marinho, Junqueira Aires, Orlando Gomes, para citar alguns.

A faculdade esplendorava com aulas inaugurais e conferências de João Mangabeira, Aliomar Baleeiro, Pedro Calmon, Aloísio de Carvalho Filho, Hermes Lima, Anísio Teixeira.

Nestor Duarte identificava as convicções intelectuais e religiosas de cada aluno, testando-as, respeitando-as. O mundo ebulia. O evolucionismo, o marxismo, a psicanálise, a relatividade e o positivismo ecoavam como se tivessem sido elaborados naquele instante. Eram o prato das nossas refeições. Os católicos, à Maritain, lançavam-se contra os agnósticos. Os fascistas — e os havia corajosamente declarados; ao contrário de hoje, que os há, disfarçados — terçavam com os leninistas. Dentro da escola, instalava-se, democraticamente, em sala própria, uma célula do Partido Comunista Brasileiro, apoiada por Nestor Duarte, que, não lhe pertencendo, defendia a sua permanência ali. Lá fora, ídolos: Carlos Marighela, padre Camilo Torrend, Governador Otávio Mangabeira, símbolo da democracia liberal. Os debates acaloravam-se, estimulados pelo mestre, que socorria, a cada instante, o mais fraco, enxugando-lhe o suor com a toalha de mais argumentos, sem preferência ideológica, agora só para alimentar o combate. Ele próprio um positivista. Socialdemocrata. Com santos laivos de anarquismo. Já tendo escrito “Reforma Agrária”, hoje clássico.

Desabrido na linguagem, quando em vez, saía com um desaforo verbal contra discente que lhe feria a sensibilidade, ao mesmo tempo que soltava o sorriso da compreensão e tolerância, admitindo que “o homem de bem precisa ter a audácia dos canalhas”. Não aceitava a omissão, notadamente a oportunista.

Quem foi aluno de Nestor Duarte aprendeu a liberdade de pensar, de não temer, de não aceitar a opressão. Aprendeu a liberdade de rir-se dos tiranos. Só não aprendeu a liberdade de submeter-se, ser patrulhado, sabujar-se em busca de conveniências menores.

Sem dúvida, Nestor Duarte abriu as janelas dos “Tempos Temerários”, outro romance seu. Tudo isso acontecia durante e até o fim da Segunda Guerra Mundial. Comemorávamos os 400 anos da Cidade do Salvador. E o centenário de Rui Barbosa. Colamos grau em 1949.

Não sei se não passa por aí o fato de saírem da nossa turma três nomes lembrados para governador: um eleito, Waldir Pires; outro, que o seria não fosse a tragédia — Clériston Andrade; e um terceiro, sem méritos, bem verdade, que não aceitou a candidatura, por questão de coerência ética.

Os outros professores poderiam ter ensinado até com mais profundidade, ordenando melhor os conhecimentos, transmitindo de modo mais prático os institutos jurídicos. Foram notáveis.

Mas era Nestor Duarte quem dava o tom. Animava a festa do saber, com a Introdução à Ciência do Direito. Sem ele, teríamos um concerto sem calor. Até monótono. Poderíamos sair mais sábios da faculdade. Porém nos faltaria essa vontade indomável de resistir, de não nos dobrar. De ser contra a prepotência. De crer na vitória final do bem.

 

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).