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Um mestre da caatinga

Euclides Neto

A Tarde - Salvador-BA - 1999

A Tarde, 31 de maio de 1999 

Muitos sulistas dizem que o Nordeste só dá dor de cabeça. Somos gabirus (aliás, fisicamente, Rui Barbosa também o foi). O novo Código Penal já considera crime e discriminação contra nordestino. Meu xará chamou a gente de forte, para caçoar. Pretenderam até jogar o lixo atômico no Raso da Catarina. Inconscientemente queriam se ver livres de nós.

Pois bem, exatamente na beira do Raso, uma das regiões mais secas do Brasil, onde vegetam facheiro, macambira, araticum, umbuzeiro, sob o sol de lascar, vive um cativeiro (caatinga) competindo em lucratividade, tecnologia e produtividade com os lordes das terras roxas de São Paulo e Paraná. Seleciona o melhor nelore do Brasil. Ganha medalhas nas principais exposições agropecuárias. Em Uberaba, já recebeu título de Comendador, pelos seus feitos. Está em todos os livros e revistas sobre zebu, ao lado dos lordes de Araçatuba. Vende vacas para fornecer embriões.

Quando resolveu selecionar equinos, escolheu no Raso um terno deles. Após alguns anos de labuta, usando somente o seu dom natural de computador de última geração, conseguiu animais superiores aos árabes e quartos de milha, que se hospedam em hotel 5 estrelas, para serem leiloados por milhões. Viu na feira uma cabritinha canindé, das que aqui chegaram há séculos e se transformaram em bicho do deserto. Seu rebanho, hoje, com mais de 2.000 cabeças se iguala às homólogas inglesas. Até universidades vão lá em busca de exemplares para melhorar as suas seleções. Agora, com vacas pés-duros, conseguiu leiteiras, tão rústicas que não conhecem ração balanceada das que um saco custa um bezerro apartado. Adaptaram-se ao búfalo fenado no pasto, à palma e, quando aperta demais, encontram na macambira um pitéu dos deuses. Cria animais e empregos!

Não tem a vaidade dos novos ricos empresários e banqueiros que compram os campeões, da seleção dos outros, só para mostrar e fazer bonito.

Acha, sem nunca ter lido Saramago, “que para a navegação só há dois mestres verdadeiros, um que é o mar, o outro que é o barco”. Foge de banco, salvo para depositar as economias. Descobriu que juros e correções devoram todo o seu trabalho. Preferiu fazer o patrimônio tirando o couro da própria correia. Ajuda o governo: se precisou de energia elétrica, puxou linha de oito quilômetros; se quis estrada, construiu 18; se necessitava de poços tubulares, os perfurou com seus próprios recursos.

Mora na fazenda. Acorda bem antes dos passarinhos e dorme antes do sol agasalhar-se. Venham conhecer a Vargem dos Gatos, no município de Geremoabo, para aprender como se resolve o semiárido. Universidades e governos teóricos convidem Joãozito Andrade para lhes ensinar como, sem Bird, que causa cirrose hepática financeira, se faz tudo isso. O fidalgo catingueiro ainda se dá ao luxo de doar terras a empregados que as cultivam com o mesmo sucesso, como é o caso de Dodó. Nesta seca, de quebra, está espalhando bebedouros na caatinga para os animais silvestres.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ipiaú-BA (1925-2000).