Reforma agrária sem muita conversa
Euclides Neto
A TARDE - Salvador - BA - 1987
Enquanto não tivermos as condições ideais para realizá-la, vamos iniciando como for possível. Quem vai pra longe, dá milho e ferra o burro. E não espera o amanhecer. Antes da rompensa do dia pega a estrada.
É o que estamos fazendo.
Já temos alguma terra viável, o que significa dizer: chão com água. Não podemos aguardar que aconteça como em Israel. Somos pobres. Lá existe dinheiro até sobrando — direta ou indiretamente vai do mundo inteiro; lá existe tecnologia sintonizada com as melhores universidades de todos os sóis; e há uma vontade, diria mesmo um capricho, de mostrar ao mundo que são capazes, dentro de uma louvável vaidade humana. Aqui temos pouco disso.
E, se não possuímos tecnologia a contento e dinheiro, urge admitir: quem não tem cachorro, caça com gato.
De saída, mais simplicidade nos programas. Essa conversa de projeto ambicioso, o mais ambicioso do continente ou de não sei onde, interessa pouco. Essa história de edificar um palacete em agrovila — como no caso do Ramalho — para receber o presidente que passaria uma tarde lá (e não passou, que ele não era tolo) não pode repetir-se. Construir a casa do gerente e, ao lado, antes de abrir uma cova de feijão, levantar um auditório, não dá.
Não se pode fazer o plano sem ouvir os valores costumeiros do lavrador, imaginando-o um citadino apreciador da rua em quadrinhas, pracinhas, escolinhas, bonitinhas, eletrificadazinhas. Salvo se ele o desejar.
Roceiro quer a casa no seu chão, o ninho de perua debaixo do oratório, o mocó onde moquear a caça, o chiqueiro de cabra pegado à camarinha, o tempo da mulher aproveitado na roça enquanto o feijão cozinha ou a roupa quara. Quer o menino arrastando a enxada ao juntar as primeiras forças. Quer o filho adolescente — macho ou fêmea — pegando na foice, no plantio, na colheita. Quer a árvore plantada no terreiro e molhada nas primeiras desobrigas da manhã. Quer ouvir o canto do seu galo ao amanhecer. Quer, enfim, a integração corpórea e espiritual com suas coisas, bichos e hábitos. Ele sabe muito. Experimenta naquele laboratório da vida há 500 anos, respira com o tempo, a semente e a terra, passando de neto a avô numa comunicação amorosa que vem de outros milênios com o perpassar das eras. Essa coisa não pode ser quebrada. Precisa, sim, ser complementada, dirigida, sem violentação, com técnicos que metam a mão na leira, que suem junto, que se ombreiem no momento das dificuldades, que possam virar uma pessoa só no instante de solucioná-las.
Estas, sim, precisam ser vencidas no momento em que, além da técnica, dos recursos materiais, o parceiro da reforma agrária terá que ter um outro elemento: o ânimo de servir a uma causa. Um colorido ideológico: religioso ou político. Não queremos o insosso, o inodoro, o indiferente, o que faz por fazer, o autômato. Reforma agrária é uma missão: prática, objetiva, determinada, com uma carga emocional intensa. Não podemos implantá-la com os sangues-frios.