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Praia de Busca Vida

Euclides Neto

A TARDE - Salvador - BA - 1993

 

O mar é um desperdício de beleza, imenso. Deslumbramento. Quase eterno, se não fossem os dedos dos homens, semeando os miasmas da morte. Naquele dia, a maré vomitava as porcarias que nela tinham jogado: latas, vasilhas envenenadas, plásticos, borra cor de abóbora da fábrica e restos dos esgotos despejados lá longe, sujando o azul.

 Não havia gaivotas esquiando ao vento nem bem-te-vis pousando nas pedras, buscando migalhas. Até os sargaços e algas estavam misturados a troços do consumismo. Raros pescadores, já velhos e infelizes, olhavam longe, procurando cardumes impossíveis. Era mais para conferir as águas, matando a saudade, melancolicamente. Nem peixes aflitos havia. Só uns poucos, apodrecidos, destripados, testemunhavam o tempo.

 Nem uma gaivota.

Uma cazumba de tartaruga também se degradava na praia. Morrera ainda muito jovem, sem completar a vida. Restara dos milhões que nasceram da última postura, quando as mães chegavam das lonjuras, pejadas, deixando os ovos no sossego das luas, certas de que daí a tempos muitas retornariam para desovar, povoando o mar. Talvez aquela seja a derradeira. O mar devolvera a carniça, que agora o sol esquentava, ajudando a labuta dos vermes que a consumiam.

 Via-se uma pedra cinza-parda: esfiapada, parecendo trapos, semienterrada, coberta de moscas gulosas. Fedia. Não era uma pedra — o mar também repulsara a baleia morta.

 Cadê as gaivotas traquinas, leves e lépidas, andar de bailarinas, correndo no palco vítreo das laminas d'água que fogem sobre a areia?

 Onde estão os negrinhos esguios que brincavam ali? Corriam, cabriolavam, metiam-se nas ondas feito tainhas. Eles vadiavam na praia como os seus antepassados também o faziam. Desde o tempo em que os avós dos avós partiam nas pirogas, canoas e jangadas.

 Um resto de coqueiros continua trinando as palmas ao vento, conferindo a chegada da civilização. Muitos já tombaram no lugar onde hoje estão cimento, cal e tijolo. Seus frutos não medram mais no chão, multiplicando-se. O estômago do menino faminto não deixa. A noite confunde suas sombras com as dos ladrões e assaltantes — a sociedade que está nascendo com a morte das gaivotas e dos moradores do mar.

Onde estão as flores de lemanjá, devolvidas aos devotos pela sublime delicadeza da rainha?

Ainda tento encontrar uma gaivota.

 Felizmente ali está uma. Só uma. Tolada de betume, presa na areia. Agoniza.

 Só resta o sol. Eterno e triste, testemunhando o ocorrido naquele pedaço do Litoral Norte da Bahia.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).