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A mulher e a reforma agrária

Euclides Neto

A TARDE - Salvador - BA - 1988

 

            A mulher da roça é a segurança da própria família. Não raro, o marido abandona-a com a renca de filhos, o que acontece por várias razões, inclusive por algumas independentes da sua vontade, busca de emprego em outras paragens; inquietação mesmo do bicho nômade que mora nele, acrescida da maior facilidade de locomoção. Nessas ausências, tentadores atrativos prendem-no, deslumbram-no, levando-o a esgarçar os laços para com a casa. Sem falar nos volúveis e trêfegos que deixam o lar em busca de camas (ou esteiras) novas, pouco se incomodando que a parceira, usada até encher o marsúpio, fiquei arcando com a dificuldade da prole. No caso da luta pela terra, quando o perseguidor esturra os capangas, o parceiro é obrigado a correr. A mulher fica em casa para receber os malvados, é intimada a fim de dar conta do companheiro, mesmo sem saber por onde ele anda. Suporta ela todas as violências físicas e morais. É o momento grandioso da sua coragem: defende as crias como um animal acuado. Chega ao heroísmo.

            A mãe dá o peito até que a última gota seja-lhe sugada pelo caçula. Vende os dias e as horas. Deixa de comer a farinha para distribuir aos rebentos. Violenta-se, negociando todos os lábios do corpo, se ainda lhe sobra alguma carne. Assiste à morte dos meninos até o derradeiro, se for o caso. Seca as lágrimas. Ali, firme, enquanto as forças o permitem. Às vezes, nem notícia nem mandado do desaparecido. O próprio sofrimento come a saudade. Abandonar os filhos, nunca. Outros, vendem o trato de chão, ganho com o esforço comum, e esbanjam o preço, expulsando-a do abrigo. A mãe carrega a ninhada, vai morrer no cochicholo de papelão, reconstitui o grupo, ainda que na miséria extrema.

Daí a razão pela qual as glebas da reforma agrária devem ser passadas em nome da mulher (ou de ambos), dando-lhe mais segurança. Sei de um ex-prefeito que ao ceder lotes aos beneficiários só o fazia em nome da mãe de família. Até hoje todos estão amparados, inclusive o pai, que passou a matutar sete vezes antes de abandonar os seus.

Que não se dê a terra somente ao rapaz de 18 anos, se solteiro, como é de praxe! A moça da mesma idade também a merece. A mulher, igualmente, constitui família. E, no caso, enquanto vivermos a era dos genrocratas, é sempre bom um dote que estimula a segurar o interesseiro.

E não me venham dizer que somente o chefe de família lavra a terra. Pode ele, normalmente, fazer o trabalho mais duro: a cabruca, a derruba, o lascar lenha. Mas, no fim da jornada, sol se pondo, voltam os dois da roça. Ela vai soprar as cinzas do borralho, coa café. Ele pega a tigela e vai bebericar languidamente recostado ao oitão da casa. Esfarela o turno e remói o tempo, tirando um cochilo. Ela continua a briquitar com os filhos, apanha água, pisa o milho do cuscuz, lava os pratos, nina os pequenos. Já ele, ressona na tarimba quando ela chega para o descanso.

No canto do galo é ela quem primeiro salta da cama para recomeçar a labuta e inventar a comida para todos.

Quando chega alguém e pergunta quantos sacos foram colhidos é ele quem colhe as glórias do sucesso e recebe o valor da safra. Gasta-o, também, resmungando quando ela pede um trocado.

Não é a regra, felizmente, mas por aí ainda a vida da mulher da roça.

Acendemos, aqui, a chama em defesa da heroína. Que suas companheiras, agora, soprem o fogo.

 

 

 

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).