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O príncipe e os eunucos

Euclides Neto

Tribuna da Bahia - Salvador - BA - 1994

Tribuna, 06 de fevereiro de 1994

 

                 O príncipe, como todo ciumento, tomava atitudes drásticas. Por exemplo: só ele podia se aproximar da princesa Glória.

                 Os súditos não participavam das intimidades do palácio sem antes deixar os badalos do lado de fora. Havia mesmo uma sala especial para a sinistra cirurgia, executada pessoalmente pelo nobre. Não confiava em ninguém. Usava métodos rudes. Importara uma máquina Burdizzo da Itália e, após o seu uso, maceteava, por segurança. Esmagado o canal deferente, com a torques e o macete, os silenciosos cordeiros padeciam o que se chama no interior de "volta". Por fim, e só aí, o emasculado podia adentrar nos salões e alcovas reais. Passava a ser considerado "sangue puro", isto é, sem vontade nem desejo de pensar. Muito menos discordar. Ninguém se aventurava a se candidatar sem ressalvar, assustado, que tudo dependia do sinal verde do príncipe.

                 O soberano só recebia boas notícias. Onde chegava, festas, banquetes, aplausos. E sempre mais súditos surgiam, dispostos à obrigatória deferectomia, esperançosos das vantagens que daí podiam surgir.

                 Afinal, no reino, só havia eunucos: os legisladores, magistrados, jornalistas, artistas, poetas, cantores, escritores. Com as conhecidas exceções, todos foram castrados. Os que não se submeteram à máquina Burdizzo, ao macete, à volta e à faca, sofreram processos mais malvado: a castração pelo grito, acompanhado do terror. E, como todos sabem, a libido desaparece com o medo, pelo que a vítima ficava inutilizada e temia quem dispunha das pessoas, dos cargos e dos bens. E temia mais ainda, porque o nobre era amigo dos mais poderosos da terra: do rei Fernando — O Corrupto e do rei Robertão — o Tocador de Trombetas. No brasão da casa real, lia-se em bronze o lema: "Aos amigos, tudo. Aos inimigos, a minha ira".

                 O povo morria de fome, de tuberculose, os agricultores deixaram de semear feijão e passaram a plantar maconha, os meninos eram assassinados por muitos Herodes, não havia vagas nas escolas e a manufatura caía. Só se pensava em festa e recepção aos estrangeiros que chegavam para predar a terra e abusar das meninas, levando de volta a notícia de que o príncipe era o maior administrador de quantos existiam, até onde chegavam as trombetas de Robertão.

                 Um dia, o príncipe teve de ser substituído. Estava muito doente, como todo príncipe que já viveu demais, odiou mais ainda e nunca imaginou que o seu último dia chegasse. Precisava de alguém da sua absoluta confiança para perpetuar o reino e a integridade da princesa Glória.

                 Aí complicou. Assim como o criador de ovelhas que castrou todos os borregos machos e não deixou nenhum para fecundar as ovelhas do rebanho, assim também o príncipe não teve ninguém que o substituísse no reino: eram todos eunucos.

                 E a princesa Glória morreu com o seu senhor.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).