menu play alerta alerta-t amigo bola correio duvida erro facebook whatsapp informacao instagram mais menos sucesso avancar voltar gmais twitter direita esquerda acima abaixo

O príncipe e as odaliscas

Euclides Neto

Tribuna da Bahia - Salvador - BA - 1993

                Falaremos dos gazéis hedonistas de Bâkî, poeta turco, para esquecer tristes lamentos ocorridos a cada tic-tac dos relógios das catedrais. Sepultaremos as angústias desse crepúsculo de século, que poderá ser o último.

                Vamos preferir um quadro soberbo de beleza e arte: o príncipe está sentado à mesa repleta de iguarias. Regala-se com as uvas, maçãs, figos, tâmaras, abricós: quartos de cordeiros crocantes, perus, faisões doirados nos molhos orientais; finíssimos ensopados de língua de colibris; ânforas de vinho. Mas sua fisionomia é cinza. Foi sempre um glutão dos prazeres mundanos. Agora, resta-lhe um único gozo: o poder. Lá fora, as legiões de janízaros soam tambores e cornetas.

                 É dia de festa. Vestido de ouro e prata, o nobre assiste deslumbrado aos volteios caprichosos das odaliscas, vindas de reinos longínquos.

                 A da frente é mexicana. Cabelos volumosos, encachoeirados pela nuca, negros como o azeviche. Um buço insinuante ressalta-lhe a sensualidade. Apesar de cristã protestante, jamais protesta. O príncipe a contempla e pensa: virtuosa demais.

                Aparece a italiana, feições pétreas como dispositivos constitucionais. A cabeleira em cuia lembra a de um juruna bem cuidado. Veste-se com musseline de finíssima seda transparente. Não pode esconder o corpo.

                Agora é uma alemã, personagem de Saramago em In Nomine Dei, esmagando os sabatistas de Munster. Dá muitas voltas no salão. Poderá ser a preferida. Contudo, está assanhada em demasia, oferecendo-se. É quem mais leva as uvas e figos aos lábios do príncipe.

                A otomana chega no esplendor da sua graça. Veio da tribo Ghuzz, que sempre buscou despojos valorosos. Exímia na dança, sempre temeu o príncipe, satisfazendo-lhe as vontades. Leva vantagens sobre as outras: é curandeira de milagrosos dotes.

                 Estão inseguras. A chamada Breve é a mais pudica. Nunca ri, o que lhe dá ares de menino enfezado. Ao contrário da mexicana, é quase descabelada. Outras odaliscas cochicham pelos cantos. Falta-lhes oportunidade.

                 A dança vai ficando mais voluptuosa. Todas se enfeitam com penas coloridas de aves das lagoas. Os bobos (não há corte sem eles) ficam deliciados com a disputa e aguardam o grande momento da escolha da candidata preferida.

                 Mas as próprias odaliscas já se sentem traídas. E enciumadas. A italiana pensa em libertar-se de uma vez. A devota, com muitos bentinhos ao pescoço, está conformada. Conta com alguns momentos que passará na alcova.

                 Foi quando o príncipe adormeceu. Empanturrado de guloseimas, mal ouviu os últimos acordes das harpas e os mais belos versos do poeta Bâkî.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).