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Moradia e reforma agrária

Euclides Neto

A TARDE - Salvador - BA - 1985

 

 

                A expressão reforma agrária continua levantando polêmica. Certamente porque lembra Cuba, Rússia, China e afilhados. E o que brota de tais fontes traz o ferrete do execrável. Felizmente, contudo, de tanto repetir-se, as duas palavras rubicundas perderam a virulência e até já são pronunciadas nos salões do rei, assim como certos nomes pornográficos de há 20 anos deixarem de ser substantivos, virando familiares exclamações. E que não há país sério — Japão, México, Índia etc. — onde não haja, com licença da palavra, reforma agrária, cujo sentido é muito elástico, prestando-se a diversas conceituações. Portanto, a primeira medida a tomar quanto ao termo odiento é torná-lo audível, eufônico, acostumar os ouvidos mais sensíveis ao trato com a pornofonia. Aqui fora está havendo pânico, pavor, urticária, gente com febre, horas de sono desperdiçadas com o anúncio do fim do mundo. Já se fala em comprar arma (e estão comprando mesmo!), tempos de João Goulart. E sinal de que se acredita no que diz a Nova República, o negócio é para valer mesmo.

                Mas onde está a relação de tudo isso com moradia? E só viajar pelo interior do estado e observar a enorme quantidade de casas vazias, espalhadas pelo meio do campo. Não raro, existem vilarejos completamente desertos com dois ou três velhos, remanescentes da teimosia. A causa disso? Só procurar saber: os latifúndios foram crescendo, costurando as pequenas posses, derramando a ambição, cercando as moradias. Plantaram capim e hoje bastam poucos vaqueiros. Aquela gente foi pra onde?

                Deus sabe. Conheço pequena vila que se constituía de 70/80 habitações. Como seus ocupantes incomodavam a engorda do gado, mexendo nas aguadas, apanhando lenha, tirando, enfim, o conforto das nédias reses, o foi proprietário foi adquirindo as casas, uma a uma, como galinha em terreiro de milho. E derrubando. O valor? Só das telhas. Se cobertas de palha ou sapé? Valem nada. Quando não demolidas, ficam os esqueletos pelo meio do pasto ou simplesmente a capoeira tomando conta com uma árvore frutífera ao lado, testemunhando a passagem de almas. Com o surgimento dos boias-frias, muitas habitações das fazendas também ficaram desocupadas.

                São milhares — não sei se milhões — de casas abandonadas pelo Brasil afora, já pagas, construídas, quintal ao fundo, a roça ali pertinho, que abrigaram gente trabalhadora. Sim, porque a moradia está ligada ao trabalho e à produção. Do que adianta ganhar mais na cidade empinada, se tem de pagar o transporte (que custa até 30% do salário), o aluguel (até 40%), todas as frutas, a água, a lenha do fogão, sem falar no trauma do deslocamento para a metrópole-monstro. E o pior: agravar as dificuldades, todas já conhecidas do confinamento humano. Alguém ainda se dará ao trabalho de estudar (se já não o fizeram!) o drama do homem bisonho da roça, com seu punhado de verbos da comunicação, que vai para São Paulo e volta malucado. Já vi muitos. E não só daqui da região do cacau. Vão iludidos. Rapazes robustos, em torno dos 20 anos. Voltam abestalhados, quase paralíticos, dores generalizadas, meio dementes. Só os psicólogos podem explicar o fenômeno. Parece que chegam lá e não metabolizam o bombardeio de impressões: piscar de luzes, veículos em alta velocidade, colhendo gente pelas ruas, horários rígidos, ruídos durante o sono, sirenes policiais. Sei lá quanto diabo solto nas ruas, atordoando a vitima!

                Também o Ministério do Desenvolvimento Urbano deveria entrar na luta de salvar a casa já edificada, criando lei proibitiva das demolições. (Não se impede o corte de árvore, a caça de calango!) Exatamente a casa que ele, o caçula dos ministérios, não pode financiar, porque o seu proprietário não tem condições de saldar o débito: o de renda horizontal.

                As moradas existem, confortáveis até certo ponto, pois é preferível habitar o casebre de taipa e ouricuri, tendo o canto do galo no umbuzeiro ao lado, do que o boqui no cabide do morro, sujeito a tudo que é desgraça.

                Precisamos, sim, de segurar o homem na roça, no mato. Nem é na cidade pequena. Nada desses estímulos de edificar sede de municípios. Não. Reforma agrária para que a família não abandone a sua casinha quando tangida pelo jagunço na grilagem violenta, ou pela venda desesperada das suas tarefas (grilagem sem dor), sob a ilusão de escola, saúde e conforto adiante. Precisamos ter a coragem de admitir que, primeiro, o homem precisa comer, depois morar e, em seguida, vem educação, saúde, quase um luxo em face da moradia, infelizmente. Ainda. E não adianta lamuriar-se de que a mansão de Nestor Jost, com seus 20 mil metros quadrados, inclusive jardins, banheira de mármore de Carrara, garagem com paredes de cobre trabalhado, daria para construir mil (!!!) núcleos de casas populares. Sem falar na piscina em forma do “J” do deboche, tudo com o dinheiro do Banco do Brasil, que não existia para custear os pequenos lavradores, fixando-os na terra, em suas moradas. Isso o que veio a furo! Que o primeiro passo da reforma agrária seja  o de assegurar e posse da casa e da terra. Ainda nem é preciso muita desapropriação de glebas. Por enquanto, mantendo a família aqui fora, já teremos várias dificuldades resolvidas.

                O BNH também precisa entrar em campo, defendendo a morada do homem do interior, mas dó interior do município (muita gente confunde a cidade-sede com a verdadeira zona rural), salvando milhares de habitações sem gastar um tostão e sem o constrangimento de cobrar de quem não pode pagar.

                A reforma agrária resolverá o sufoco das moradias. Além das muitas vazias, o cidadão terá o lote amplo, onde qualquer Zé-da-Baixa-da-Cuia sabe fazer um rancho, abrigando-se e à família, sobretudo com o adjutório do vizinho. E junto ao trabalho. E perto da fonte. E do gás de fogão em forma de lenha. No dia que Deus mandar o bom tempo terá luz elétrica (também é luxo!). A escola é possível. Não carece de transporte. Meu Deus, quanta coisa resolvida com uma mudança sensata, estudando caso por caso, começando pelas áreas de tensão, varando os latifúndios improdutivos. Mas tendo o cuidado de deter-se, cuidadosa e inteligentemente, mesmo numa grande fazenda, como a do barranqueiro Valdemar Moura, do São Francisco, que, além da exploração agropecuária, plantando tudo que é comestível, dá terra a 800 famílias agregadas, preserva a fauna e a flora numa reserva particular de 15 mil hectares, reconhecida peto IBDF, no meio de centenas de fazendeiros que já devastaram as matas e animais silvestres com o algodão e seus tóxicos, ou plantando capim-guiné, prenunciando saaras. Ter cuidado, ainda, quando encontrar uma fazenda de capim despovoada, sem produção, pois o seu dono pode ter vendido o gado para pagar ao banco os módicos juros que os acionistas estão sempre a exigir. Cada caso é um caso. Também não significa mandar o carente de terra para o Cruzeiro do Sul, lá nos confins do Acre, só porque lá é terra devoluta. Possivelmente o aproveitamento das casas vazias do interior resolveria o problema da habitação chamada popular. Mas... bom, para isso, é preciso a reforma agrária.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ipiaú-BA (1925-2000).