Insensibilidade
Euclides Neto
Tribuna da Bahia - Salvador - BA - 1993
Chega a revoltar o descaso com que os representantes dos poderes constituídos —Executivo, Judiciário e Legislativo — olham os miseráveis. A rigor, nem se apercebem do que está acontecendo em volta. Mesmo que morem nas coberturas e, do alto, ao abrir as janelas, vejam as invasões fervilhando de seres famintos, sujos, despidos, entrando e saindo das tocas como ratos.
Ao vê-los, o sentimento nem é de nojo ou ódio. É pior: indiferença.
Daí continuarem a receber salários acima das possibilidades do erário. A desculpa é que a lei os ampara. E, quando não existe a lei, elaboram-na para beneficiar os comparsas, sabendo que mais tarde serão favorecidos com ela. Tudo acomodado em um corporativismo de resultados recíprocos.
São contra a estatização, mas vivem sempre grudados ao marsúpio do Estado (estatizados!), sugando-lhe até as últimas energias. Gozam de vantagens ilimitadas. As aposentadorias viram úberes suínos em dois renques de tetas. Enquanto chafurdam na corrupção legal, corre solta a miséria pelos becos, morrem crianças de inanição, mulheres parem como bichos, a juventude procura a violência como opção de vida.
Estão roendo o País, multiplicando-se. Nos três poderes da República. Até homens de bem andam se acomodando nas almofadas do conforto abusivo. Tudo amparado em lei. Homens íntegros — ou que já foram — confundem dispositivos legais com a ética. Agora mesmo está aí o escândalo de Sarney, Figueiredo e Geisel, os do sistemão, sendo apanhados em corrupção de comportamento pela juíza Maisa Giudice. Imaginem o que não fizeram às escondidas. Não há muita diferença para os métodos coloridos. Bravo, deputado Valdomiro Fioravanti, que requereu a ação popular!
Quando acende uma luz na consciência deles, devem encontrar sempre a desculpa cínica da legalidade.
Assim, senhores presidentes, governadores, senadores, deputados, prefeitos, vereadores, ministros do Supremo, desembargadores, juízes, promotores, altos funcionários de autarquias, estatais, repartições públicas, secretários de estado façam um exame de consciência e verifiquem se é justo o que os senhores estão ganhando e usufruindo, enquanto o povão não recebe nem as migalhas desse opíparo repasto da injustiça social.
Reparem se não há cheiro de corrupção quando os que mandam subtraem tantos recursos em favor próprio, enquanto os demais não podem sequer defender-se dos senhores.
Pelo menos não tenham a hipocrisia de pretender solucionar a fome com a esmola. Devolvam um pouco em favor dos miseráveis. Ou, pelos menos, repudiem com sinceridade esse absurdo de trocar comida, que mata a fome, por armas, que só fazem matar.