Déficit potencial
Euclides Neto
Tribuna da Bahia - Salvador - BA - 1993
Devemos ser uma economia muito especial para operar com enorme capacidade ociosa, ter substancial desemprego, ter superávit no balanço comercial e, ao mesmo tempo, uma inflação de 35% ao mês. E se imagina corrigi-la com juros altos, como se fosse produzida pelo excesso de demanda!
E por isso que é preciso estabilizar e, simultaneamente, corrigir o desequilíbrio fiscal e adotar medidas de liberalização, privatização, eliminação das distorções etc., que caminhem no sentido de aumentar a eficiência do sistema econômico. A percepção do equilíbrio fiscal permanente é sem dúvida fundamental para o equilíbrio macroeconômico. E a eliminação das distorções é fundamental para eficiência microeconômica, que produz o desenvolvimento.
O que se deve perguntar é se faz sentido procurar o equilíbrio operacional deixando a estabilização para depois numa economia trabalhando a 74% da sua capacidade. Não seria melhor produzir a estabilização, estimular o funcionamento do setor privado, cortar o corporativismo e privatizar para reduzir o estoque da dívida?
O conceito de déficit "potencial" (o déficit que existiria com inflação zero) que vem sendo utilizado pelo governo tem um certo encantamento mágico. Nas discussões, entretanto, ele produz mais calor do que luz, porque não existe critério objetivo para determiná-lo. É claro que ele implica o consenso sobre quais são as "necessidades básicas" a serem inevitavelmente atendidas pela atividade governamental.
Por outro lado, ele facilita a aceitação da tese de que o governo federal é uma pobre vítima indefesa da irresponsabilidade do Congresso, e que a inflação de 35% ao mês que nos atormenta é apenas a "inflação necessária" para corrigi-la.
E, o que é pior, ele é um conceito imobilizante porque sugere que sem a eliminação preliminar do déficit "potencial" (como se ele não dependesse daquela avaliação subjetiva) nada pode ser feito. Afinal, ninguém explicou até agora por que com uma inflação nula as despesas "inevitáveis" do governo federal devem ser da ordem de 30% do PIB, deixando um déficit "potencial" de 6% do PIB, claramente não financiável. E muito menos se explicou por que é necessária uma inflação de 35% para eliminá-lo, a não ser que se considere uma tautologia como explicação.
Por que não é possível cortar claramente o que a inflação cortará cegamente? O conceito de déficit "potencial" é suspeito. Ele sugere sempre o aumento de impostos e protege o ministro da Fazenda que não tem disposição de enfrentar os seus pares.
O ajuste racional (levando em conta a escassez de recursos e as taxas de retorno dos projetos) exige uma luta diária, dura, ingrata e impopular. E obriga o presidente a arbitrar! E ainda transforma o ministro da Fazenda numa espécie de anti-herói que desperta as simpatias porque é incompreendido pelo Congresso...
Mas a suprema vantagem do déficit "potencial" é que, como subproduto do próprio conceito, ele elimina a ênfase na absoluta necessidade da reforma administrativa do setor público e no enfrentamento do corporativismo organizado que se apropriou de Brasília, duas tarefas ainda mais ingratas e impopulares, mas das quais o governo não pode continuar a omitir-se.