Criação de cabras e tecnologia
Euclides Neto
A TARDE - Salvador - BA - 1996
Por mais sério e competente que seja o trabalho feito sobre caprinos pela Embrapa em Sobral, Ceará, a publicação em A TARDE Rural, 16-5-96, merece alguns reparos e grandes elogios. Os elogios quando defende a caprinocultura como uma das atividades mais viáveis para o semiárido, combinando o seu hábito alimentar com a flora. Muito mais viável que a megalomania obsessiva dos grandes projetos de irrigação, que bebe todo o dinheiro dos incentivos, enriquecem umas poucas empresas, vendedoras de insumos, servindo a um reduzido grupo, que só produz visando à exportação. Sem levar em conta a grande massa que mora nos cafundós, longe, e nem de água de beber dispõe. Tudo isso está muito bem explicitado na biografia de Dom José Rodrigues, escrita pelo alemão Siegfried Pater, e que recomendo consultar. Acabo de recebê-la e já li de um gole.
Por outro lado, a tecnologia tem que ser aplicada depois da segura comprovação do custo-resultado. Uma coisa é o experimento numa estação do governo, em condições ideais de instalações, alimentação, funcionários especializados pagos, sem qualquer risco de prejuízo, já que os recursos públicos cobrem tudo. Outra, é a do catingueiro. (Conheci um deles no miolo do Raso da Catarina, que criava os animais adaptados e selecionados há séculos pela natureza agressiva: pequenos, pouco leite, mas resistentes). Faz dias vi um técnico recomendando fazer inseminação em cabras no semiárido, com material importado da Europa. Cheguei a dar um nó na garganta. Imagine-se aquele rasocatarinense levando um botijão de nitrogênio num jegue miúdo, fazendo rufiões e esperando os resultados dos lindos pimpolhos que não suportariam a solina. Quantos veterinários sabem fazer inseminação em cabras? Na pátria da saanen, os criadores alimentam o rebanho com soja, farelo de trigo, alfafa, feno especial, em capril (nem é chiqueiro!), protegido como joias em caixinhas de veludo. E aqui?
A nossa dificuldade de criar cabras (região de Jequié) é também a onça. Fi-lo (já que escrevi capril!) em Iramaia. Tive que tirar umas poucas restantes de lá, para que a felina não comesse até o pai-de-chiqueiro. Perdi dois terços do rebanho. Em Manuel Vitorino, a não-sei-que-diga, vinha pegar dentro do chiqueiro, que ficava entre o oitão do meu quarto e o oitão do quarto do vaqueiro. É a pior doença local. Pois não dá aftosa, pododermatite, caroço quase não existe. Diarreia é rara. Aparece um pouco de boqueira, que não se cura com iodo a 10%, mas com querosene, que é tiro e queda. Alguma verminose não chega a comprometer o criatório. Agora crio na margem da Barragem de Pedra, Maracás. Se uma cabeça dormir no mato, a bodeira sangra.
O artigo sugere que muitos problemas seriam resolvidos com o crédito. Se criador de cabra tomar dinheiro a banco — a pior de todas as feras — vai perder as cabras e até a terra. Além da vergonha da inadimplência. Pior ainda é a chamada Lei dos 4 fios, que devastou a caatinga para plantar capim-búfalo e criar gado, acompanhada por projetos tecnicamente elaborados. Os novos fazendeiros, usando somente os quatro fios de arame farpado, matam o criame dos pequenos e tradicionais criadores que passa por baixo deles, acabando a solta, inclusive o fundo de pasto, onde os bodes procuravam comida instintivamente e sempre achavam uma rama, uma folha seca, uma casca de pau, uma cabeça-de-frade. E aí, doutores, sem que o lbama o saiba, como proceder? Espera com um cabrito preso no cercadinho alto, chavinote na trilha, veneno na caniça, caçador, arataca, roçagens, nada resolve.
Existe outro limitante maior que o furto: o cachorro. Muito sonso, pode estar a lamber agora a mão do dono e daí a pouco, ir estragar as cabras. Sem falar no carcará, gato-do-mato, raposa, jiboia, que preferem cabrito.
Depois de tanto projeto é que o rebanho vem diminuindo. Não somos contra a tecnologia — evidente!!! —, mas desde que seja objetiva, comprovada em nossas condições de exploração, fazendo as contas de custo-benefício. Enquanto não se tiver esta certeza, é melhor deixar como está. Foi assim que a Bahia fez o grande rebanho que possui. Precisa, sim, voltar a plantar palma.
O artigo, com honestidade e merecendo louvores, reconhece os altos custos das inovações tecnológicas. E critica o desentrosamento dos órgãos de pesquisa, da extensão rural e dos governos, além da descontinuidade da assistência quando existe. Parabéns pela coragem. Ressalvando-se: existem muitos técnicos que pretendem fazer trabalho sério, porém, nem de gasolina dispõem para o carro sem partida e com pneus carecas.
Nenhum governo se convenceu que se tirasse uma ínfima parcela do que perde com os bancos, usineiros, empresas falidas e aplicasse num programa sério para a caprinocultura nordestina, economizaria milhões de cestas básicas, remédios com a saúde e a inflamação dos grandes centros.
Vale a pena a publicação do artigo. Mais uma vez, parabéns para A TARDE Rural e o Dr. José Almir Martins Oliveira.