menu play alerta alerta-t amigo bola correio duvida erro facebook whatsapp informacao instagram mais menos sucesso avancar voltar gmais twitter direita esquerda acima abaixo

Carne de Bode

Euclides Neto

A TARDE - Salvador - BA - 1995

Soube que os soteropolitanos têm resistência à carne de bode.

Ainda bem. Porque se descobrissem a gostosura do ensopado de um espinhaço, com manjericão, alecrim e favaca grossa, não ficaria bodete no sertão para alimentar quem, realmente, mais precisa de comer.

                No dia em que saboreassem um fígado assado na brasa, somente no sal, em espeto de caçutinga, ainda meio tolado de cinza, imaginaria que aquela deveria ser a comida dos arcanjos.

E a fatada, viuvinha, meninico, cozinhado no redém?

Já não digo da carne de sol serenada duas noites de lua crescente, levando ervas cheirosas da caatinga?

Outro dia, esteve em minha casa um casal ilustre, gente que se chamava antigamente de grã-fina. Tabaréu quando recebe esse tipo de visita, capricha nos requintes daquilo que já aprendeu (infelizmente) nos livros de arte culinária. Não faltam as maioneses, peru à Califórnia, não sei que diabo ao vinho e outras extravagâncias.

Contrariando os desvelos e preocupações da dona da casa, e por descuido de minha patroa, chegou à mesa um lírico pedaço de carne sol dois pelos (bom dizer que bode também dá essa maravilha), acompanhado de uma parte das costelas. No ponto. A visita começou a beliscar as iguarias, até que resolveu experimentar a comida exótica. Tirou uma lasquinha e

levou aos lábios. Minha mulher empalideceu e aconselhou outro prato. Todos nós temos nossos complexos, sobretudo nós cá de fora, e a maneira de os mitigar é disfarçando as origens. Mas eu queria que o paladar requintado fizesse um julgamento.

Pois bem. A carne de sol caprina venceu disparada todos os outros quitutes, que sobraram desmoralizados.

Felizmente essa gente das capitais não conhece um assado de quarto de bode, castrado no minguante, no dia que nasce, com alicate de uma unha do polegar calejada no ofício. Graças a Deus e à santa ignorância continuam dizendo que bode fede, tem ranço, é comida de bugre.

                Daí não ter gostado quando o professor Edgar Faria ensinou, em inoportuno artigo, que carne de boi tem 20% de gordura, carneiro 18, o mesmo que o frango, e cabrito em torno de 5 a 6%. Não gostei, em termos. Receio que daqui por diante, como pânico do colesterol, os avisados deem preferência pelo que os tolos ora refugam e, mais ainda, o sublime acepipe rarei cá fora, passando a ser como toda comida que pode ser exportada.

Já que o mestre nos ensinou também que ela é chique nos países do Primeiro Mundo, tememos que saibam disso e, só pela mania de copiá-lo, haja uma devastação nos chiqueiros e fogões dos caatingueiros.

Que Deus nos proteja. E o escritor-sertanista-bodeiro Oleone Coelho Fontes nos defenda pelas horas que são. Sem esquecer Calasans Neto, também um devoto da cabra.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ipiaú-BA (1925-2000).