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Bacharéis de 5 de novembro de 1949

Euclides Neto

A TARDE - Salvador - BA - 1999

 

 

Testemunhamos o fim da Segunda Guerra Mundial. Tivemos a felicidade de comemorar a derrota do nazismo e a vitória da democracia possível. Há mais de meio século. Em cada banco da Praça da Piedade erguia-se uma cópia da estátua de Castro Alves. Éramos todos tribunos aguerridos. Nestor Duarte, o mestre da liberdade, dava-nos aulas de como praticá-la e vivê-la, na sua plenitude. Hauríamos a cidadania como o ar que nos dava vida. Soubemos que a maior virtude do profissional do direito era a coragem de enfrentar a tentação do dinheiro e do poder. Havia na faculdade um halo de ética. Nós, socialistas, ou integralistas, ou religiosos, ou agnósticos discutíamos calorosamente na sala de aula nossas convicções, açulados pelo professor de Introdução à Ciência do Direito. Respeitávamos o direito do outro de divergir pensar e pregar as próprias ideias. Existia a preocupação da busca da verdade.

Aprendemos a resistir a todas as corrupções: da omissão à submissão, mães das outras. Ouvíamos conferências de João Mangabeira, Gilberto Freire, Anísio Teixeira. Assistimos a comícios de João Neves da Fontoura, José Américo de Almeida e Octávio Mangabeira. Carlos Mariguella andava pelos becos e ladeiras da Cidade do Salvador, levando a tocha da utopia, que nos apaixonava. Formamos, assim, o caráter cívico.

Muitos dos nossos mestres tinham escutado Ruy Barbosa ao vivo, na sua pregação do direito, da ordem e de irresignação contra as injustiças. Octávio Mangabeira, capaz de fazer verão com uma só andorinha, governava a Bahia, cultuando o respeito ao Legislativo e ao Judiciário. Venerava o cumprimento das leis. Os poetas navegavam nas espumas da liberdade criadora, sem esperar favores do rei.

Cuíca de Santo Amaro, menestrel das esquinas, opunha-se a tudo e cantava seus cordéis defronte ao Palácio, e, se alguém pretendia calá-lo, o próprio Mangabeira desautorizava, acrescentando que não se silencia a autêntica voz do povo, que vinha das ruas.

Ouvimos o grito das revoluções Chinesa e Cubana. Nascia o próprio tempo. Somos a turma de 1949, dos 400 anos da fundação da Cidade do Salvador e do centenário de Ruy. Privilegiada pelo que vimos e vivemos na juventude. Aprendemos a gritar aleluias como as crianças ao receber o primeiro oxigênio, sob o signo da liberdade.

Todos nós, jovens com 70 anos etc., continuamos a resistir ao autoritarismo. Ainda ouvimos o pulsar dos sinos daqueles tempos. Não envelhecemos, pois não perdemos, ao deslizar dos anos, os ideais do estudante. Enquanto persistir o jovem dentro de nós, conservamos o frescor dos que não abdicaram do direito de sonhar.

As colunas alvas e firmes e bem erguidas continuam guardando a Faculdade de Direito. Simbolizam independência e virilidade. Para nós, o amplo portão ainda se abre à praça, comunicando-se com os nossos semelhantes. Na entrada, a figura olímpica de Emídio, com sua autoridade moral. Não queremos ver as grades e lanças de aço, separando hoje os professores e alunos das gentes, como se a Escola da Liberdade fosse um cárcere. As nossas colunas também continuam sem se curvar. Oramos as ave-marias do entardecer deste século e as matinas do milênio terceiro. E nem saudades sentimos. Só as padece quem perdeu o passado em alguma curva das trilhas da existência.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ipiaú-BA (1925-2000).