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Depoimento: "Pioneiros eram mendigos, prostitutas, operários"

Euclides Neto

A TARDE - Salvador - BA - 1979

 

Depoimento: "Pioneiros eram mendigos, prostitutas, operários"

 

                Tendo surgido para solucionar uma situação de crise e baseada no princípio do trabalho coletivo, a Fazenda do Povo sofreu, ao longo dos anos, algumas modificações em sua estrutura e objetivos. Melhor do que ninguém, seu idealizador e fundador, o advogado Euclides Neto é quem conta sua história.

                “Nós estávamos saindo da seca de 1963 e havia em toda a região uma crise muito grande de trabalho, não só para aqueles lavradores velhos ou doentes, como também para os homens aptos a exercer o serviço braçal. Então nós imaginamos desapropriar uma fazenda e dividir entre os trabalhadores que estavam sem serviço, como também para receber aquelas famílias numerosas, os trabalhadores doentes e prostitutas que tivessem ainda condições de prestar algum serviço. Visamos também fazer uma experiência de reforma agrária, em termos socialistas”.

“O TRATOR TIRA O TRABALHO DO HOMEM”

                — Além disso, queríamos degelar um pouco a monocultura do cacau, criando condições para que se pudesse plantar hortaliças, cereais e cítricos. A Fazenda do Povo serviria também como espécie de centro, onde os pequenos fazendeiros em volta dela pudessem aprender determinadas técnicas de plantio e de exploração da pecuária. Assim é que, desapropriada a terra, — que pertencia a três pessoas que não a exploravam — levamos para lá cerca de 60 famílias, que receberam do Banco do Brasil um crédito de Cr$100,00 cada uma. Esse dinheiro foi usado para a compra de uma vaca, sementes e custeio do plantio.

                Outro motivo, foi que pretendíamos fazer uma merenda escolar na Fazenda do Povo, porque observávamos que os meninos, por mais pobres que fossem, depois de algum tempo recusavam o cereal e o leite que vinham dos Estados Unidos. Eles enjoavam desses alimentos e não comiam mais nada. Pensamos então em fazer uma merenda escolar com base na alimentação local, servindo rapadura, melaço, farinha, etc.

                Assim, as 60 famílias foram para lá e a prefeitura orientou também a exploração com vista ao comércio, porque não adiantava cultivar produtos que não tivessem uma pronta saída. Outra medida foi suspender o funcionamento dos tratores para a abertura das estradas, pois cada trator podia ser substituído por vários homens. Então eliminamos os tratores e pagávamos somente dois ou três dias aos homens que estavam na Fazenda do Povo para fazer os serviços de estrada e os dias restantes eles trabalhavam na fazenda.

“APESAR DE 1964, A FAZENDA ESTÁ VIVA”

                Desse modo, pretendíamos daí condições de vida às famílias numerosas, cujos chefes estavam desempregados; aos trabalhadores doentes ou velhos, que não tinham condições de efetuar trabalhos pesados e às prostitutas desamparadas. Enfim, eram pessoas sem nenhum recurso, e que eu achava que a prefeitura tinha obrigação de amparar. Na realidade, queríamos também fazer uma experiência de ordem socialista numa área rural para ver até onde funcionava. E os resultados alcançados eu acredito que tenham sido excelentes, pois apesar de 1964 a fazenda está viva até hoje.

                Naturalmente a estrutura social mudou um pouco, pois de 1964 para cá foram reformulados alguns conceitos e o estábulo, que era coletivo e de onde eram retirados o leite para todos e o adubo para as terras, desapareceu. Mas o pessoal continuou trabalhando em conjunto tendo criado ainda a feira do bairro da Democracia, tanto para vender seus produtos como também homenagear seus companheiros que tinham ido para lá após a enchente que deixou grande número de desabrigados. Essa feira hoje é tão grande como a feira normal da cidade o continua sendo feita pelas mesmas pessoas.

                A Fazenda teve também um papel educativo, tendo servido para esclarecer muitas coisas aos lavradores que lá aprenderam, por exemplo, que se pode criar uma vaca num espaço de 3 x 4 metros, enquanto a mentalidade na região era de que se precisava de grandes pastos para o gado. Ali se aprendeu ainda que em Ipiaú se pode fazer a horticultura, porque aqui só se pensava em cacau e mais nada. E toda a orientação foi dada por um horticultor prático, que era um homem que nem sabia ler, mas com grande experiência no cultivo da horticultura.

O CEMITÉRIO A PRIMEIRA AÇÃO CONJUNTA

                Esse orientador, que atualmente é o gerente da fazenda, instalou-se na área e começou a plantar, sempre transmitindo aos demais os métodos que ele utilizava em seus plantios, como também as diversas formas de irrigação. Dessa maneira ele se transformou no líder natural do grupo, tomando mais tarde a iniciativa de fundar um cemitério na área. Batizado como o “Sumitério da Boa Vontade”, este cemitério foi primeira ação conjunta dos moradores, surgindo da necessidade de enterrar um menino que morrera. Eles se uniram, cercaram uma área e saíram em busca de quem soubesse escrever para efetuar o registro da morte do garoto.

                A comunhão de interesses entre os moradores se refletiu também na necessidade de transportar para a cidade os produtos retirados de suas terras. Utilizando o jumento, eles se uniram para o transporte das mercadorias e era comum, nas manhãs de sábado, se encontrar uma tropa com dezenas ou até mais de uma centena de jumentos, levada pelos moradores da Fazenda do Povo. Quando eles começaram a produzir muito, estenderam sua comercialização aos outros municípios e aí a população da cidade começou a reclamar. Mas era claro que eles deviam procurar outros mercados, porque a fazenda foi feita para atender a suas necessidades e não às dos moradores da cidade.

                Eles se uniram ainda para a construção da escola, do estábulo, para a melhoria da estrada de acesso à sede e para as benfeitorias de que a fazenda necessitava. Assim, a Fazenda do Povo foi indo e tendo uma importância cada vez maior para o município, que tinha ali sua principal fonte produtora de hortaliças e legumes. Ao lado disso, foram instaladas também uma olaria e uma casa de farinha, sendo esta última utilizada não só pelos moradores, como também pelos vizinhos mais necessitados. A olaria por sua vez é administrada pela prefeitura e até hoje sua produção é doada à população pobre do município.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).