menu play alerta alerta-t amigo bola correio duvida erro facebook whatsapp informacao instagram mais menos sucesso avancar voltar gmais twitter direita esquerda acima abaixo

A triste realidade do interior

Euclides Neto

Folha do Cacau - Camacan - BA - 1985

 

                Possivelmente a coisa de 64 contribuiu para o desprestígio do interior. Quando digo interior não me refiro ao município como um todo. Quero falar sobre o interior dos municípios em particular. Ou seja: a área rural propriamente dita.

                Se as liberdades individuais foram esmagadas durante o turvo que se apelidou de revolução, muito mais padeceu o município. É que desapareceu a sua autonomia. Os tributos foram cevar as burras federais, deixando à comuna os de refugo e antipático predial, um deles. Até os orçamentos ficaram condicionados às normas do governo central, que terminou enfeixando todos os poderes, devolvendo os impostos requentados e tirados por uma prioridade que não era a do interior. E como as autoridades superiores andavam somente nas capitais, nestas eram edificadas as obras para lhes serem mostradas sob os clarins, tambores e cornetas.

                Além disso, o confortável hábito de viajar de avião afastou os governantes da realidade brasileira. Aliás, a estrada de rodagem asfaltada vinha dando ao governador, por exemplo, uma visão distorcida do interior, já que ele

 ao andar de automóvel, via somente as boas pistas e, mesmo assim, melhoradas para a sua passagem. Que dizer então do bimotor ou boeing nas alturas, sem dar ao chamado Primeiro Escalão a oportunidade do contato com o meio rural? A Excelência sai de cidade em cidade (pelas maiores, evidente) sobre as nuvens macias e azuis. Não temos coragem de afirmar que o melhor seria como no tempo de Pinto Aleixo, quando ele chegou no então Rio Novo, de carro, e precisou tomar a mula (ainda que a melhor de picado da zona) para ir até Ibirataia, vendo estivados, degraus, brocotós, cheirando e sentindo até nas regiões impublicáveis do corpo a realidade do interior mesmo.

                Não cremos na existência de um Governador, mesmo escolhido entre os nobres do império derrubado (por pior que seja fica ao leitor o direito de escolher o seu!) que enxergue a fila de potes e lata à beira dos caminhos, esmolando um pouco de água, o consinta que seus cabos eleitorais a neguem ao eleitor adversário, como foi comum nas últimas campanhas. Não cremos que um Governador tope lavouras (hortigranjeiras, sobretudo) nos empréstimos e corredores das estradas de rodagem quando do outro lado da cerca estão as excelentes terras do latifúndio improdutivo, sem pensar numa reforma agrária mais enérgica.

                Também temos o direito de sonhar com o que acontece na China: o ministro é obrigado a passar um mês de cada ano prestando o serviço mais humilde de sua pasta. Já pensaram no finado Delfim Neto (o da agricultura) no cabo da enxada limpando eito de catinga? O Abi-Ackel servindo de oficial de justiça, montado em burro coiceira, à procura de gente nas matas do Córrego de Pedras? O Andreazza no rabo da galiota... O Cals comendo tripa seca com farinha durante quatro semanas, longe dos cento e quarenta milhões da sua mordomia, devorados em igual período...

                Não. Esse comportamento chinês não é possível aqui. Nem em sentença de condenação pelos crimes cometidos. Mas, ao menos, gostaríamos de vê-los pelas estradas de barro e poeira de quando em vez, conhecendo o interior de meninos pançudos.

                Não vale ir ao interior e ser recepcionado na sede do município de Ipiaú ou Jequié. A realidade não está aí. É muito diferente. Interior mesmo é que vegeta fora da cidades-sede, na roça chamada zona rural, cada vez mais largada à sua própria sorte. Conhecer o interior e visitá-lo não significa sentar-se ao banquete costumeiro servido por senhoras e senhoritas loucas para mostrar a moda do eixo Atenas-Paris, tudo muito bem apresentado, limpo, desmanchadas em gentilezas e fidalguias. Sem contar os discursos tribulares.

                Daí o interior continuar morrendo, definhando, padecendo do que chamaríamos síndrome de Raynaud (que os médicos me perdoem a comparação), pela qual as extremidades do corpo vão perdendo a circulação, necrosando, passando ao resto do organismo, causando a morte. É exatamente o que continua ocorrendo: o Brasil vai morrendo pelas extremidades, as cidades (o peru à Califórnia e a maionese), importantes recebendo tudo. Cada vez mais o presidente cuida dos grandes centros, o governador igualmente, e os prefeitos não fogem à regra: para as sedes, luz, esgoto, escolas, assistência médica; para o interior longínquo, cada vez mais distante, mesmo que comece no fim da rua, o esquecimento. Como se não existisse no país o êxodo rural, a exploração dos lavradores de enxada nas mãos, a mulher que ainda morre de parto, o costumezinho muito simpático de manter jagunços, que são chamados de milícia particular (constituída notadamente de ex-policiais aposentados, ou expulsos da corporação — da ativa também servem, contanto que não seja um capitão Ranulfo, espécie em extinção pela conduta corajosa e irreparável!), como está acontecendo hoje, agora, ainda. Se a Nova República não atinar para isso a tendência é piorar: nem a esperança restará mais.

                Que os partidos esclarecidos descubram tais bolsões e não se contentem com os discursos e entusiasmos das cidades politizadas, esquecendo-se de lá do mato, onde os espertos engordam na ignorância dos sofredores, tementes de não receberem água de beber caso votem contra o mandão.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).