A Constituinte
Euclides Neto
Folha do Cacau - Camacan - BA - 1986
Constituinte é um dos processos de elaborar a Constituição. E o que é Constituição? O constitucionalista pedante começaria dando a definição de Mirabeau e, repetindo mais de trinta (bote definição nisso!), chegaria a Kelsen, passando por Bryce, Cooley, Maurice Hauriou e outros sangues-puros. Sem falar nos cafuzos Josaphat Marinho, Pedro Calmon, Afonso Arinos etcetera. Omnis definitio periculosa est: até o bisonho escriba deste já se apavora no latinório besta e inútil. Nós diríamos que a Constituição é a lei que rege todas as normas jurídicas de um estado — fim de papo, diria num “Canto lá que eu canto cá”.
Quando uma Constituição diz “Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido” (Art. 1º § 1º da Carta de 67), já se vê que é uma farsa. Onde o poder do povo se fez presente nos tristes anos da ditadura? Evidente que nas demais constituições brasileiras a letra delas também não correspondia à realidade.
Para que o poder emanasse do povo seria necessário que este impusesse a sua vontade: no papel e na vida do dia a dia.
Ora, quem é o povo? Diríamos que é a classe média para baixo — pequenos comerciantes, industriais, fazendeiros, profissionais liberais, operários urbanos e rurais. A rigor, porém, povo é a massa o que mais apropriadamente se chama de povão. Assim, muitos já se excluem do conceito. Quem quiser que chame um funcionário público de quinto escalão de povo! Por conseguinte, os da favela , das invasões, os agregados da terra, os boias-frias são o povo, os balconistas (de certas boutiques já não se consideram), garçons (de alguns restaurantes também não se chamam) e por aí vai. Claro que não entra aqui o conceito de habitante do mesmo país, de uma mesma língua, etc. Refiro-me a povo do nosso entender político de hoje: povo na boca do candidato no palanque do comício.
Para simplificar essa lenga-lenga toda, vamos restringir e dar como povo todo aquele não paga salário e vive dele.
Esse tipo de gente no Brasil é a maioria absoluta. Mais de dois terços. E que, pela lei, é igual ao terço restante. E, como tal, vota sem distinção.
Sabe-se também, que em regime livre e democrático — admitamos o nosso — prevalece o voto da maioria.
Suponhamos, agora, que se entenda de lavrar uma constituição obedecendo à vontade do povo.
Só para brincar de utopia, vejamos. Aqueles dois terços não permitiriam as terras presas nas mãos de poucos. As fábricas seriam suas. Proibiriam que se construíssem palácios para os governantes, enquanto eles moram nos barracos. Que aconteceria se o povo apanhasse os torturadores de 68 pelas goelas? Ou metesse a mão no diretor, secretário, ministro no instante em que recebem os 10% da propina? Certamente na Constituição elaborada pelos dois terços conteria dispositivos assim: a renda da união será gasta na seguinte ordem de prioridade: comida, casa, saúde, escola para o resto. Outro artigo: só se usará máquina quando ela não tirar o trabalho do homem. Mais um: a terra — rural ou urbana — sem utilização poderá ser ocupada por quem dela necessite. Ainda: só se exporta o que o povão não precisar para o seu uso, e só se importa o estritamente necessário. Obrigatoriamente haverá trabalho para todos: o Governo que dê o seu jeito. Os salários serão de acordo com a necessidade de cada um. Não se considerará furto quando o povo subtrair de quem tenha mais, para comer, vestir, morar, tratar-se e educar-se. Consideram-se autorizados os transplantes dos órgãos dos mortos. Os assalariados terão o direito de eleger os deputados e senadores na proporção dos seus eleitores.
O assunto é longo. Mas se o povo mesmo se manifestasse na Constituinte, nós teríamos, evidentemente outra Constituição. Com outra filosofia e regime. Com esta não adianta pedir sugestões às Organizações de Base, Sindicatos, Clubes, etc. Porque tudo será peneirado pela ideologia e interesse da classe — reduzida, já se vê — que, em nome desse povo, vai soprar na urupema o feijão batido.
Só tem um recurso de o poder emanar do povo: quando este for conscientizado dos seus direitos e poderes e impuser a sua vontade nas urnas. Aí, sim, a Carta Maior acompanhará o regime da maioria, democraticamente.
*Data a ser revista