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O tempo – orelha

Hélio Pólvora

Orelha em “O tempo” - segunda edição - 2013

Euclides Neto era do romance. Deixou para mais adiante, para a maturidade, o conto – composição fechada, de efeito único, com que muitos afoitamente se iniciam. E estava para ser do novo (para ele) gênero um mestre quando a Indesejada o colheu. Talvez ela não o tenha atingido de chofre. Talvez andasse a espreitá-lo, e ele a pressentisse. É provável que o título deste seu único volume de contos em edição póstuma, O tempo é chegado (2001), tenha algo de premonitório, além de declaração bíblica.

Por não ser homem recluso, de habitar torres, sejam ou não de marfim, Euclides bebeu na realidade que conhecia bem: a boca do sertão e o sertão pleno, o lavrador solitário, o vaqueiro, as humildes casas de paredes divididas, os arruados, os conflitos de posseiros com presuntivos senhores de terras, as escaramuças do homem preso à ambiência. Escreveu sobre o que viu, o que sentiu. Sobre as desigualdades. Foi um ficcionista fiel ao meio.

Nestes contos ele mantém o compromisso com a realidade próxima. São episódios que vão da simplicidade da narrativa oral, por ele recolhida, ao mistério da personalidade. Os quadros se completam em forma de casos, de lances ora dramáticos, ora trágicos – e algumas vezes patéticos. Do acidente, que seria a oralidade, a inata sabedoria popular, ele faz a difícil travessia para o incidente – passa da simples moldura para as tintas densas, para o traço psíquico, o instante crítico, a volta do parafuso, o momento revelador.

Tivesse vivido mais uns anos, Euclides Neto se consagraria como contista. O conto que dá título a esta coletânea é prova cabal. É sua obra-prima, um dos mais bem escritos, ao menos na Bahia. Tem um toque sucinto e submerso à la Hemingway, e ao mesmo tempo a disfarçada ternura da prosa seca de Graciliano Ramos. Enfermo, um ancião delira. Imagina-se no mato, em uma de suas caçadas costumeiras. O cão festeja-o, embora intua que não haverá volta.

Grande e sentida metáfora. A última ilusão piedosamente tecida pelos que se inocentam no instante derradeiro e, a contragosto, armam-se e partem. Página lapidar, de funda ressonância emotiva, não haverá quem, lendo-a com os marejados olhos da consciência, não se sinta cúmplice, companheiro, irmão.

ilustração: Adrianne Gallinari
Hélio Pólvora
Hélio Pólvora: Romancista, contista, cronista, crítico literário e tradutor.