Lituraterra
Jairo Gerbase
Apresentação em “Comercinho” - segunda edição - 2014
Suponho que um prefácio seja enunciação de um leitor. Não representa exatamente o enunciado do autor. Cada leitor privilegia certo aspecto de um livro. Talvez privilegie aquilo que lhe dá prazer. Ou prazer e desprazer simultaneamente, o que, neste caso, devemos chamar gozo. A tendência a privilegiar o viés marxista ou socialista do livro que espero prefaciar — Comercinho do Poço Fundo de Euclides Neto — é contagiante. Porém, vou explorar um outro viés, o viés freudiano ou psicanalítico. Embora duvidando se a psicanálise se presta a motivar uma crítica literária. Não quer dizer que vou tomar por referência uma psicobiografia do autor para explicar a obra. Vou fazer outra coisa. Vou perguntar o que é literatura do ponto de vista psicanalítico. Vou perguntar se este livro é uma literatura. Diz-se que literatura é a arte que usa a letra como meio de expressão, assim como a pintura usa a imagem, a música o som, etc. Definição parcial, suponho, mas que servirá ao meu propósito. A literatura usa a letra e quanto mais recorre à estilística, à arte de bem escrever, mais se torna arte poética. A psicanálise se inspira, desde Freud, em muitos autores e textos literários para validar seus achados clínicos. É assim porque a neurose é um romance ou uma novela. Vou citar muito brevemente alguns obras da literatura universal, umas mais conhecidas que outras, que influenciaram a psicanálise. Começando com Édipo de Sófocles, seguindo com Hamlet de Shakespeare, Os irmãos Karamazov de Dostoievski, A juíza de Meyer, Gradiva de Jensen, A carta furtada de Poe, A janela de esquina do meu primo de E.T.A. Hoffmann, A enfermaria número 6 de Anton Tchekhov, Helena de Machado de Assis, e terminando com Ulysses de Joyce. Note bem ao que estou chamando de influência. Desde que Joyce deslizou de a letter para a litter, isto é, de uma letra para um lixo, a psicanálise se interessou em saber como o inconsciente comanda a função da escrita literária, ou, de outra maneira, se o escritor tem algum domínio consciente sobre o que escreve. Ela se pergunta se literatura deriva de litera, letra, ou litura, rasura, se é literal ou litoral, se é por em ordem ou em desordem, parir em ninhada ou espalhar detritos, buscar o som ou o sentido. Ela se pergunta se a literatura se tornou lituraterra, ou seja, se ela tem de portar um conteúdo ou se é apenas uma acumulação de restos. O conto de Poe, A carta furtada, serve de exemplo, pois neste, o conteúdo da carta não se leva em conta, não se sabe se se trata de alguma delação ou sedução da Rainha, a carta circula por várias mãos sem nenhuma referência ao seu conteúdo. Neste sentido Joyce é exímio. Tudo que se disse do sentido dos escritos de Joyce não passa de enunciação de seus leitores, inclusive Beckett. Eu quero propor que Comercinho de Poço Fundo de Euclides Neto é algo assim. Que não devo classificá-lo como regionalista, porque, ao descrever o comportamento de alguns personagens de uma pequena comunidade da região grapiúna da Bahia, como Bonifácio, ele é tão universal quanto Tchekhov descrevendo o comportamento de alguns personagens do interior da Rússia, como em O mendigo. Que não devo classificá-lo como socialista, porque, ao descrever um personagem como Seu Beto, é tão universal quanto se estivesse descrevendo um capitalista moderno, como ele mesmo diz na quinta porteira. Então, quero propor que a literatura de Dr. Euclides é uma acumulação de restos, que ela é feita de nonada, que é equivalente ao Menina de lá de Rosa, ao Finnegans Wake de Joyce, A enchente de Ellis. Dr. Euclides fez lituraterra. Ele não esteve ocupado em nos propor nenhum conteúdo significado: nem regionalista, nem socialista, nem comunista, nem capitalista, nem pacifista, nem cristão, nem espiritualista, nem seja o que for de significado. É bem por isso que cada um o classifica seja onde for. Ele apenas se ocupou da poesia, da poética. Ele apenas se interessou do que não presta, do resto, da rasura, da litura. Ele não quis nos transmitir senão o gozo da leitura. É por isso que seu personagem principal do Poço Fundo é São Benedito. Tal como ele diz na porteira de chegada. Seu negócio é o blá...blá...blá..., o tá...rá...rá, o patati... patatá... a lengalenga... Tudo que ele quis foi, como diz na porteira oito, provocar no leitor o desejo de ler. Sua intenção é a mesma de Aristófanes em As nuvens, fazer um chiste, provocar o gozo de rir. São Benedito foi quem escondeu o negro que fez mal a moça bonita, deu fuga a Tomás, ao vaqueiro purloin, enfim, é responsável por todos os malfeitos, como se diz hoje em dia. São Benedito é um resto, uma litura, um lixo. É ele o personagem principal dessa lituraterra. Originário da velha Baradadá das Tesouras, cobiçado como uma relíquia por um cirurgião, tal como em A cidadela de Cronin, São Benedito acabou por acaso se tornando o padroeiro de Poço Fundo, substituindo São José, e operando milagres como São Januário de Nápoles. A sétima porteira é uma espécie de prefácio do livro. A filosofia de seu Beto — um pão e um pedaço é um pão e meio — é um significado do livro. O autor tenta negar que seu livro é feito para o gozo do autor e do leitor. Mas, não consegue. Prova que a justiça não é cega. Que subversivo é o jegue, odasso. Que a cobra muçurana é o significante do engodo. Que subversão é piada de estudante universitário enquanto não descobre a realidade hoje chamada de governabilidade. Que boi sente saudade tal qual filho que é mandado a estudar fora. Que João Vermelho é o codinome de queimada. Que vaqueiro xucro é freudiano. Que quem detrata o outro se emporcalha. Tudo, enfim, que parece lição de moral não passa de litura, chiste. Dr. Euclides não quer passar nenhuma mensagem, apenas quer gozar da letra e oferecer o leitor esta mesma chance. As estórias contadas em Poço Fundo podiam ser contadas em São Petersburgo, Atenas, Londres, Viena, Baltimore, Rio de Janeiro ou Dublin. Neste sentido, Comercinho do Poço Fundo é literatura universal. Ernestina, a boneca viva, poderia ser personagem de um filme hollywoodiano no papel de Barbie. Boca Preta bem que poderia representar Bel-Ami de Maupassant ou Julien Sorel de Stendhal. Bonifácio é um mujique. Muçurana é invenção, mitologia, forma de dar sentido ao sem sentido, tal como em Esopo ou La Fontaine. Baralho é um chiste sobre o hipismo. Vem - de - Longe hoje está bem representado nos aposentados, são os arrimos de família. Dr. Renato sem dúvida representa a escroqueria da advocacia. E as cartas de Dr. Juarez, nada melhor para significar la lettre, carta ou letra com a qual o escritor criativo, o poeta faz liteira ou, de preferência litura. Por fim, o verdadeiro prefácio está na porteira de saída. Um botequim de causos, mas pleno de palavras estrambólicas que dariam para formar um novo dicionareco. Tal como Bagno em A língua de Eulália, Dr. Euclides defende a língua de Camões falada pelo matuto, inclusive os neologismos inventados pelos escopeteiros. Ele entende, tal como Saussure, que a língua é social, um seixo rolado que vai se gastando no cuspe do povo: relampo, entanguido, languenza, ensangado, mongo, engarrido, lexéu. Assim como, ele diz, a finalidade do boi é virar ensopado, a da literatura é virar lituraterra. Assim é nossa língua, a última flor do Lácio, segundo Bilac, inculta e bela. Sua ideia sobre como o inconsciente comanda a função da letra é simples assim: montamos um burro pegador e zambuado, botamos o bicho à direita, ele enqueixa para a canhota, obstinado, como pau que nasce torto, e nos leva aonde quer. Resultado da viagem: chegamos onde nem tuzemos em passar.