Hélio Pólvora para Euclides Neto
Carta em “A enxada” - carta - Rio de Janeiro - 1997
Reforma agrária tinha para ele a simplicidade de um teorema de Euclides — o outro Euclides. Seu último romance, A enxada e a mulher que venceu o próprio destino, é de uma pureza de propósitos admirável. É a história de uma camponesa, enxadeira, que compreende sua ascensão social apenas pelo amanho da terra, apenas pela dedicação ao trabalho diário que faz brotar o suor.
A enxada seria uma fábula tolstoiana no Brasil de hoje. Certamente todos nós conhecemos o conto “Os Três Startzi”, de Tolstoi. Um reverendo vai a uma ilha deserta ensinar o Padre-Nosso a três rudes sacerdotes. E desiste, espantado, porque eles, estropiando a oração, eram capazes de andar, como Jesus, sobre as águas.
Porta-voz da enxada, em cujo manejo sem discriminações (e metafórico, bem-entendido) via a redenção do Brasil, Euclides Neto proclamou em nome da enxada: “Alimento todos os homens: santos, operários, reis, generais, heróis, e eruditos, criminosos no fundo das prisões, prostitutas. E nunca pergunto a quem vou alimentar”.
Homem simples, de verdade, porque simples por pura convicção. A simplicidade era nele marca de nascença. Aproximou-se tanto do povo, desse povão sem rosto de quem os poderosos se servem e depois esquecem, e que muitos intelectuais amam platonicamente à distância, que veio a imitar-lhe a expressão. Literariamente, Euclides Neto praticou a oralidade. Sua escrita deriva da certidão semântica passada pelo falar do povo, e nele, estropiando-a gostosamente, ele introduz palavras raras, arcaísmos — ecos dos clássicos quinhentistas. Entendia que o povo, no livre manejo da língua, sem as peias da gramática oficial, falava bem, perfilhava os clássicos. Nesse sentido, a alquimia verbal de Euclides, em seus romances e contos, diferencia-se da aventura vocabular e léxica de João Guimarães Rosa: enquanto este inventara palavras, Euclides resgatava matrizes. Foi um pesquisador da língua brasileira. Colheu do povo a sua a sua linguagem, e deve ao povo o que de gracioso e sutil existe na sua prosa ficcional.
No empenho de fixar a gramática popular, muitas vezes mais lógica e criativa que a gramática dos doutos, Euclides Neto compilou um dicionário valioso — o Dicionareco das roças de cacau e arredores. Fechou questão em torno do termo dicionareco. Recusou as propostas de pequeno dicionário e outros títulos menos modestos e seguramente mais justos.
Era assim, de uma espantosa modéstia. Dignidade, elegância de atitudes e desprendimento o prejudicaram na literatura e na política.