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Prezado amigo Eduardo Ramos

Euclides Neto

Ipiaú - Ba - 1993

 

                Meu abraço

                Recebi o seu trabalho. Excelente. Contudo, fiquei com um sentimento de culpa: o de não ter conseguido mais recursos para o projeto “Volta à Terra”. O que me consola é que não os tinha em abundância e você sabidamente os multiplicou, como, aliás, ocorre sempre nas mãos competentes e probas.

                Excelente porque dá solução para problemas angustiantes de hoje: comida e trabalho. Objetivo: mostra saídas à infeliz fatalidade da urbanização. Sem contar com o encontro da Universidade com a questão socioeconômica da comunidade.

                Tenho alguma experiência no assunto, ainda que tocada de ouvido, sem qualquer assistência sofisticada como a daí. Em uma delas, também 5 hectares, distribuídos por 96 mulheres abandonadas e viúvas, carregadas de filhos. Quem as instruiu foi um prático, nascido e criado na Fazenda do Povo, que faz agora 30 anos. Certa vez Aroldo Cedraz, Secretário de Irrigação, que me antecedeu, disse-me que iria modificar a metodologia a fim de diminuir de 96 para 6 mulheres, rendendo muito mais. Respondi-lhe que se tivesse um projeto para aumentar de 96 para 192 eu aceitaria, pois ali se visava ampliar a mão de obra e não diminuí-la. Cada mulher recebeu 420 m2. Tudo à base de regador manual.

                Acho a compostagem a mais indicada. O ideal seria fazer um criatório de galinhas, gado, porcos, para complementar.

                Outro ponto positivo é respeitar a “ciência” do trabalhador. Na hora de fazer mesmo, o técnico tem muito o que aprender. Tanto que Israel, com toda a tecnologia das universidades do mundo (onde estão milhares de judeus dispostos a colaborar), sempre faz encontros entre uns e outros, transferindo experiências e ensinamentos.

                Vi na Índia centenas de alunos trabalhando na enxada começando a lidar efetivamente com a terra. Aqui temos o preconceito do trabalho braçal, sobretudo em uma escola onde já vigorou a lei do boi, e os filhos de fazendeiros tinham privilégios como os filhos de militares os têm nas escolas militares. Bom seria que os estudantes se sentissem efetivamente lavradores. Na Escola Chico Mendes daqui existe a mesma resistência.

                Com muita propriedade o projeto fala da timidez política do trabalhador. Antes já havia percebido isto em toda região onde se explorou cana e fumo, na Bahia. Possivelmente tenha sido a histórica submissão escrava. Ao contrário dos trabalhadores do sertão ou do sul do estado, acostumados com levantes e a sangrenta conquista da terra.

                Você fala da comercialização. Perfeito. É um dos pontos de estrangulamento. O mercado é como uma balança de precisão – muito sensível. Como as leis do universo, ainda não estão dominadas. E a simplista lei da oferta e da procura não é tudo. Além do mais, não temos técnicos especializados no assunto. Repare que homens analfabetos possuem às vezes muita sensibilidade para o caso e enriquecem pelo dom de perceberem as oscilações do mercado. Aqui na Fazenda do Povo, sem que ninguém tenha ensinado, o pessoal possui um verdadeiro barômetro, que mede a pressão da procura. São muito mais argutos que nós. Não sei se a Escola de Agronomia agasalha uma cadeira especializada. Seria o caso de repensar o currículo, não a tendo.

                Talvez fosse bom, se possível, fazer uma avaliação da diferença de resultados em ares com a assistência técnica disponível aí e áreas sem qualquer assistência. Como também é preferível, em vez do financiamento, caro e normalmente mal administrado pelos trabalhadores (quando pegam no dinheiro têm necessidades mais prementes: a dentadura da mulher, o colchão, a visita ao pai que mora longe, e a pressão do consumismo) seria bom o salário de três dias na semana em outra atividade.

                Picles. Tenho me batido muito para se produzir o de comer no local. Estamos saturados, desde o descobrimento do Brasil em plantar para exportar ou vender fora (pau-brasil, cana, borracha, café, cacau, fumo, agora soja). Enquanto o povo não come o fruto da sua própria terra, não deve exportar.

                Achei admirável a expressão tombo. É isso aí. O verdadeiro lavrador, com um pequeno tombo vai em frente. Como? Nem se sabe como, salvo se recorrer ao milagre. Tanto que na área de reforma agrária todo o segredo do sucesso está na seleção dos assentados.

                A sistematização do aproveitamento da terra em volta das cidades é esplêndida. Como falei a você pelo telefone, estamos aqui com um projeto para gravar com pesados impostos as áreas baldias, mesmo do centro, isentando-as se o proprietário as ceder à prefeitura para que possa aproveitá-las com plantio de ciclo curto. Certa feita houve uma ocupação no CIA de grandes proporções. Chamado para resolver o que chamavam de invasão, afirmei em certo momento que aqueles plantios de aipim, coentro e alfaces eram mais importantes que todas as chaminés que poluíam o ar. Evidente que pretendia caricatura, mas no fundo mesmo acreditava no que dizia em face da essencialidade da agricultura para a vida humana. Pobre de Waldir Pires: pagou caro pela escolha do auxiliar! Houve pressões terríveis. O certo é que deixamos lá mais de 600 famílias produzindo uma fábula, dentro do princípio muito bem entrevisto no PVT: a viabilidade econômica de um projeto importa menos que a viabilidade social.

                Você aborda uma questão muito importante. Imaginam que o salário resolverá tudo. Ora, o salário resolve o ganho, o estômago. É importantíssimo. Mas o ideal seria o ganho sem a dependência, ainda meio escrava, da subordinação. E usam isso de tal modo, aproveitando a miséria do povo, que, sob a alegação do emprego, instalam no Brasil as indústrias que ninguém quer mais em qualquer parte desenvolvida do mundo, como TIBRAS, Celulose, etc.

                É tão importante o seu projeto que só com um papo longo esgotaríamos o assunto.

                Perdoe-me as tiradas de leigo. Nada mais sou que um tabaréu, criado na roça, crescido lá e eternamente apaixonado por ela.

Agradeço a referência ao meu nome, pela modesta contribuição. Infelizmente, hoje, carrego o peso de não ter sido mais generoso e justo com você.

                Seu trabalho marca uma época: antes e depois de “A Volta à Terra”, de onde todos nós não devíamos ter saído. Inclusive a própria Escola. Você foi heroico ao ter a coragem de elaborar dentro de uma Universidade (onde muitos só pensam na tecnologia japonesa) um trabalho simples, exequível, mas, como tudo que é sábio e profundo, dentro na nossa realidade nordestina. Afinal, alguém que volta dos Estados Unidos aprendeu o pragmatismo, causa maior do seu desenvolvimento. Parabéns.

Recebi sua correspondência ontem à tardinha. Esta foi escrita hoje pela manhã, com o carro já me chamando para ir à caatinga, onde crio cabras. Daí a redação apressada.

 

 

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).