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Entrevista sobre sua experiência na Secretaria da Reforma Agrária

Euclides Neto

Revista OPS - Salvador - BA - 1990

 

Na Bahia como você sabe, quando Waldir Pires foi eleito, quis criar uma secretaria específica de Reforma Agrária, e me consultou sobre o nome que ele imaginava que deveria ter: Secretaria de Assuntos Fundiários. Eu opinei que deveria ser de Reforma Agrária, para desmistificar um pouco. Eu me lembro que em 64 fui ao Quartel General e quando eu falei Reforma Agrária, ele bateu na mesa e disse: – “Tá vendo, recolhe o homem, ele é comunista!”, é como se alguém fosse na casa de uma pudica senhora e falasse um nome “Filho da...” (esse é pornográfico, prende o homem).

Agora o que eu vi sobre Reforma Agrária, como nos setores do Estado, as pessoas falam, têm seu discurso, sentem às vezes, as pessoas querem fazer, mas no momento de concretizar os fatos, de materializar, surge o que você chama rotina... A rotina, o todo dia, o fazer a concepção da Reforma Agrária, o que eu chamo o “ato heroico da Reforma Agrária, o pensar maior”. Mas a rotina, ir todo dia, por exemplo, Angical, Almas, o agrônomo, o técnico, o sociólogo, o funcionário, ele está passo a passo. Hoje a doença é a praga do feijão, é a doença da galinha... A gente via por exemplo que todos os animais da Reforma Agrária não eram vacinados, que é uma prática mínima. Essa rotina, essa coisa do dia a dia... E aí eu vou passar para um ponto direto. O maior problema da Reforma Agrária não foi nada, eu diria até que não foi nem o Governo Federal, porque este nós já sabíamos. O problema da Reforma Agrária é a “ASSISTÊNCIA TÉCNICA”, desde o plantio até a comercialização.

Você se lembra daquele livro sobre os “KIBUTZ”, lá tinha toda uma capacitação voltada para isso. Os assentandos entravam num curso, eles levavam dois anos num curso, junto dos técnicos trocando experiências mútuas. Depois dessa capacitação do técnico e do trabalhador é que eles iam para a área. Repare como era diferente.

Em Angical nós pegamos a matéria bruta, nós pegamos o material humano, nem sempre acostumado a lidar com a terra, sem aquela vocação que o lavrador tem, porque se não tiver ele não fica lá, se não houver qualquer coisa, ele não fica lá na terra, porque esta ideia do consumismo, da TV, do chamado da cidade, eles não ficam se não tiverem alguma coisa a mais, uma vocação.

A parte técnica é o grande estrangulamento, grande mesmo. Só depois é que eu vim a ver, porque na EMATER-BA também não funciona. Eu estou falando como crítico hoje, eu sempre falei isso, mas Gersulino estava preocupado com a eleição dele, ele não tinha o empenho de se voltar para a Reforma Agrária, apesar de ter uma boa cabeça, ser uma pessoa aberta, mas não tinha. A EMATER-BA não foi preparada para dar assistência técnica. Por outro lado, o próprio Estado falava em Reforma Agrária como se fosse uma coisa de salão, fazia parte do “chic”, Reforma Agrária, a primeira Secretaria do Brasil, mas o compromisso com Reforma Agrária... A Educação, a secretária achava bonito, mas ela falava assim como eu penso, meio por cima e nunca conseguiu operacionalizar, realizar a coisa. Na Saúde, com Luiz Humberto, também uma bela cabeça, mas ele estava lá em cima ele não descia. A DIRES de Jacobina, de Itamarajú, os médicos estão lá, então é só designar um médico por semana que faça uma visita, que vá para ver as coisas fundamentais. O que eu chamo de fundamentais em Reforma Agrária é a vacinação, é aquele caso que o médico vai... Uma cirurgia. – Vou te mandar para o primeiro posto ou para o hospital, e o Estado tinha tudo isso, mas essa coisa não acontecia. Na verdade não acontecia porque as pessoas não tinham compromisso efetivo. As pessoas falam, vira um discurso, uma fantasia, mas no momento dessa coisa acontecer, isso não acontece.

Por incrível que pareça, aconteceu na polícia porque as coisas eram graves e agudas. Por exemplo, eu chamei toda a polícia, a PM, e o Secretário. Fiz uma grande reunião com eles. Coloquei para eles o que era invasão, o que não era invasão. A invasão para o trabalhador não é invasão, é ocupação, porque invasão é do grande, foi o grande que invadiu, o grande foi comprando 5 tarefas de terra lá do Rio Preto, tomou escritura de 480 mil ha... Quem mais invadiu foi o grande. Não é o pequeno que invade. Aí, eu expliquei para o pessoal e consegui que eles admitissem isso de botar a polícia nesses casos só depois de conversar comigo.

A polícia ia para as áreas cumprindo o mandato da justiça, à qual o governo pedia socorro, passando primeiro por mim. Então nós levávamos meses sem que a polícia fosse no Tribunal cobrando. Houve a interpelação Federal, porque o "Estado Executivo está cumprindo a Ordem”. Por exemplo: dois casos típicos: Malvinas. Malvinas existe, e um dia o Governador chegou para mim e disse. – “Que opinião vou dar sobre essa invasão?” Eu disse: – “Primeiro vou ter que dar um outro conceito para essa coisa que você chama de invasão”. Eu sempre discutia com os Secretários: – “Você têm que mudar o conceito. O conceito que se tem de Malvinas é que é uma paisagem feia, sujou a cidade, deu aspecto horrendo a Salvador. Mas o compromisso é seu (do Governador), o discurso é seu. Não foi de se colocar o serviço dessa gente? Este conceito de vocês, que é jurídico, não está certo, é um conceito social. O estado de necessidade dessa gente faz que alguém que entra na padaria e roube um pão, não é roubo, é estado de necessidade.

O caso da ocupação de área de Feira de Santana é a mesma coisa. Vem o mandato de reintegração de posse do Juiz de Feira de Santana. O Waldir veio a mim, e pede uma orientação. O Secretário já estava com 200 soldados para ir lá desocupar a área porque tem a coisa de ação imediata... O Juiz mandou, tem que ir cumprir o mandato... Convidei ele para ir a Feira comigo, ver aquela gente. Vai que não está sendo exploração de quem quer um lote para especulação, para ganhar dinheiro. Quando nós chegamos lá, estava aquela paisagem biafriana, aquelas mulheres esqueléticas, as crianças sujas, catarrentas, uma mulher com uma saia suja e quatro ou cinco crianças agarradas. Aí, eu disse: – “Você tem coragem de botar o exército, 200 homens em cima dessa gente, com cacete, metralhadora, você tem coragem de fazer isso? Porque eu não tenho”. Ele ficou cabisbaixo e voltou comigo, mas preocupado com o que ia fazer, eu disse: “O Estado tem que tomar uma providência. Ou desapropria... Mas desapropriar não pode, porque vai depender da Assembleia”. Eu disse: “A desapropriação aparentemente é ilegal, mas ilegal por uma lei de 1917. Essa lei não pode prevalecer hoje, esta terra é da Prefeitura”. Sugeri a Waldir, ele conversou com o procurador do Estado, e ele falou que só pode ser desapropriado com consentimento da Assembleia. Então a polícia ficava contida. Foi a única área em que deu para negociar, pela agudização dos problemas.

Os sem-terra, eles andavam muito coordenados, então fizeram duas ações: uma em Santo Elmiro, no Rio grande do Sul, e outra em ltamaraju. Ocuparam uma fazenda lá e outra aqui. Estavam orquestrados. Essa gente lá, o governador Pedro Simon mandou o Secretário, ele não pôde ir. Daqui eu fui, a primeira coisa que fiz quando cheguei foi dizer: “O avião, quem vai tomar conta são os trabalhadores, pois eu não confio na polícia”. Foi na época do Freire que caiu do avião, essas coisas...

Então quando eu fui à policia, a pessoa que estava lá não me conhecia, então não queria que eu visse os trabalhadores que tinham sido seviciados. – “O Sr. não pode ir ver”. – “Mas eu sou parente, vim de longe”. – “Sei, mas não pode, senão o Sr. vai se preso também”. Quando chegou, o delegado me conheceu. – “Ah! o Sr. por aqui, que veio fazer?” – “Vim ver Jaime, que está preso, é um trabalhador”.

Ele disse que ia mandar buscar, mas eu falei que queria ir lá. Enquanto Estado eu telefonei para Ênio e disse: – “Ênio, tem que mandar soltar o trabalhador agora. Ele disse: “Mas não foi o Juiz quem mandou prender”. – Eu disse: “Não pode Juiz entrar nisso”. – Ele disse, “Euclides eu não assumo”. Eu disse, “Vou telefonar para Waldir”. Eu disse para Waldir, “Não pode, essa gente não pode continuar presa, não pode, porque é um absurdo, uma estupidez, o que eles estão fazendo é absolutamente correto, eles estão organizados para isso”.

É o caso da ocupação das terras de Jairo Mascarenhas, deputado do PMDB, deputado do governo, grilando terra, roubando terra, se dava muito comigo. – “Os trabalhadores são ruins”. Eles fizeram isso porque precisavam da terra. Segundo eles, queriam testar o governo. Foram soltos. Resultado: lá no Rio Grande do Sul, em Santo Elmiro, foram baleados 23 trabalhadores. Morreram dois. Aqui na Bahia não aconteceu nada, a não ser a prisão desses rapazes. Então essa coordenação com a polícia foi muito favorável, uma coisa mais efetiva.

Mas, estradas por exemplo, meu amigo Pedral, não acontecia, quer dizer, não está neles a coisa do pequeno, do pobre, da pequena estrada. Essa coisa não chega. Eles acham que o Estado não existe, não está neles. A preocupação é a grande fábrica de celulose, é a grande estrada, a grande ponte, é a grande irrigação. Mas a coisa essencial, aquilo que constitui o Estado... o estado vive disso, quer dizer o corpo humano não vive das ..., vive da circulação. Vou dar um exemplo, sem citar nome. Na CAR, por exemplo, a proposta de Educação não conseguiu sair. A pessoa encarregada disso era o presidente da Associação, eu sempre fiz questão de valorizar isso. Desde a primeira reunião que fiz questão de chamar: “Cadê o presidente”, chamei os diretores das áreas, os gerentes... Era no sentido de valorizar a associação, pois é, era o Presidente da Associação que era o responsável pela educação. Nunca mexeu uma palha, e às vezes eu cobrava dele. Aí entra outro setor, outra coisa para emperrar: o problema ideológico político. E outro problema, pessoas que tinham a obrigação de se darem nessas coisas de Reforma Agrária. Como nós tivemos exemplo. Vocês viram Gumercindo, doente de braço quebrado, fratura na costela. Eu vi aquela menina da CERB dar o seio para um meninozinho lá do mato mamar. Lá naquela secretaria, eu vi Maia com o braço quebrado fazendo topografia, com o braço na tipoia. Eu vi Tereza, de Feira de Santana, eu me queixar dos funcionários, não, os funcionários são excelentes, admiráveis. Naquilo que eles falham é porque não se lhes deu o incentivo devido. Educação por exemplo, dentro da CAR, a coisa não andava, vocês concordam, e eu cobrava, era o menino que era o presidente, uma ocasião ele começou a existir, eu não digo agredir. Mas muito veemente, eu disse:” Olhe nós estamos aqui para fazer Reforma Agrária, que é o essencial da Secretaria, você até hoje não fez nada pela Reforma Agrária.” Educação que é a parte principal da Reforma Agrária, que é através do veículo escola que o menino aprende desde limpar unha até escrever, colher, guardar semente, organizar sua pequena cooperativa. Eu tenho a impressão de que se ficasse mais tempo do que dois anos e pouco, nós teríamos avançado um pouco, porque as coisas estavam identificando, porque eu cheguei na Secretaria, eu não conhecia praticamente ninguém. Eu não sabia nem o que era CAR. Um dia Waldir me perguntou, o que é a CAR, que ele também não sabia, eu disse não sei, eu conhecia CAB, mas não sei se é a mesma coisa. Tive a felicidade de acertar em Gumercindo, pois apesar de todos os seus tempos eu acho Gumercindo uma pessoa admirável, comprometida, e ele tem outra vantagem, que ele é ideologicamente comprometido, que ele é eticamente comprometido, é um trabalhador.

A segunda parte que atrapalhou muito, eu batia demais, era o problema ideológico. PC do B, PT, uma parte do PMDB, eu nem quero entrar na análise politica politicalha, que fica na parte ideológica.

Nós sabíamos que a coisa não estava sendo fácil, nós sabíamos que no Brasil não se quer fazer Reforma Agrária. Uma vez lá no São Francisco, acho que você se lembra, muita gente querendo as coisas assim, de repente, eu disse, olha abriu uma fresta, nós vamos aproveitar esta frestazinha da porta e fazer o possível porque daqui a pouco vai se fechar tudo, como se fechou, como está fechada. Esta fresta que se abriu, vamos passar por ela, mas é o que acontecia, o pessoal mais radical ia em Angical, e o que tinha de mais negativo... Então em vez de cobrar as coisas que eram possíveis... cadê estrada que o governo não faz; cadê eletricidade que o governo não faz; cadê isso, cadê aquilo, que não veio, que não apareceu. Como é que o Sr. quer viver num ar-condicionado e os trabalhadores aqui não podem nem assistir a uma TV porque não tem eletricidade.

Isso desestruturava a própria área da Reforma Agrária. O pouco que era possível com muito esforço, alguém lá desmanchava porque não havia, vamos dizer, ponto de vista dentro do próprio organismo do estado. Uma pessoa, não vou dizer o partido, mas isso não foi só o mal do PT, do PC do B, PCB, muito pouco, e PMDB mais fisiológico, mas isso aconteceu para desestruturar o trabalho. Não só aquela desunião que havia entre a CAR, EMATER-BA, INTER-BA, essa coisa me passava pela cabeça, isso dentro da própria Secretaria dirigida por uma pessoa só. Imagina entre Secretários, Secretário de Saúde e Reforma Agrária, Saúde e Estradas, Saúde e não sei o quê. Então acontecia às vezes, conquistar a área desapropriada, imissão da posse, três grupos de trabalhadores entram, um grupo orientado pelo PT, outro pelo PDT e outro pelo PC do B, invadiram a fazenda, aí eu chamo invasão, e cada um quer ter hegemonia.

Você pergunta, mas aí você podia dar jeito. Eu digo: eu não! Se eu fosse dar jeito, teria que usar uma coerção maior, que eu não queria para os trabalhadores, eu queria que os trabalhadores encontrassem a forma. A solução só pode vir deles. O técnico tem função de acompanhamento, supervisão, mas a distância.

O caso de Itamaraju é um caso terrível. O PT de Itamaraju era contra o Sindicato de Alcobaça, que era ligado ao Aulino que era da FETAG, que não era do PT. São trabalhadores, eu admito que o partido funcione na área de Reforma Agrária, agora, no momento de consubstanciar a Reforma Agrária, vamos ver se nós nos juntamos. Na hora da eleição cada um parte para seu partido, para sua organização. Porque o que aconteceu, aconteceu que na hora da eleição a direita levou a melhor na área da Reforma Agrária, por quê? Muito simples. Porque todo mundo que se dizia do lado do trabalhador, e era, o PT, PC do B, uma área do PMDB, essa gente brigava muito mais que o PDS e PFL que estava lá dentro.

Nas reuniões eu alegava, vocês acham que não tem condições. Muito pior do que aconteceu aqui, foi em Cuba porque lá o técnico estava com um pé na trincheira e outro na terra. Ele estava trabalhando, de repente chamava, e ele ia brigar, e se fez.

Aqui naquela época nós tínhamos tudo para fazer, tinha um governador, um secretário e eu queria fazer mesmo, eu fiz para fazer.

Tem um decreto do governo que eu cobrei depois, por implicância com Nilo, eu cobrava mais ainda. O decreto é o seguinte: “A Reforma Agrária é prioritária em todas as secretarias”. Todas as Secretarias são obrigadas a legar verbas específicas, prioritariamente, para a área da Reforma Agrária. Isso significa o quê? Que Educação, Saúde, Estradas, enfim, tudo... Mas aí acontecem duas coisas no Estado, é que cada secretaria é uma ilha. Se uma puder atrapalhar a outra, melhor. Também dentro das secretarias é a mesma coisa, é um negócio impressionante isso. Então existia lei, decreto, o governo, naquilo que o governo podia fazer, fazia.

Na hora em que aparecia, vamos dizer Bralanda, vai primeiro a Waldir, depois a mim. Waldir deu carta branca absoluta, a polícia não entrou lá nenhuma vez. Trabalhador matou gente lá dentro, matou capataz e não aconteceu nada.

Com a Rio Doce foi a mesma coisa, Santo Amaro tem 3.000 ha de cana, tem' 1.000 ha de bambu, e área para plantar comida, não tem um hectar. Resta em Santo Amaro esses 1.000 ha que estão improdutivos. – Nessa área o Sr. não pode adquirir, o Estado não vai deixar o Sr. adquirir. Ele sai dali, telefona para o governador e ele mantêm a posição. Então esse apoio a Secretaria tinha, mas na hora da execução, o pessoal que partia para Santo Amaro... não era que o pessoal, o agrônomo, o técnico agrícola, não quisesse fazer, eles não sabiam porque a escola não prepara.

Uma vez eu fiz uma palestra em Cruz das Almas e disse que o único latifúndio que tinha em Cruz era da Escola de Agronomia. Eu falei para todo mundo lá, depois eu fiz um acerto com eles porque os lavradores ocuparam uma pequena área, e era a única área que produzia, e eles queriam tirar. Eu disse não! Ele disse: Mas isso é do Estado! Eu disse não,  vocês não produzem nada, aqui não se planta um pé de alface, não se tira um litro de leite, não se faz criação de nada. Como é que os trabalhadores estão plantando mandioca, amendoim, batata? Como é que esses rapazes saem de uma escola dessa para ir ensinar lá em Angical? Você deve ter ouvido muito na Secretaria, uma vez nós pedimos para fazer o Projeto de Almas, o projeto era inteiramente irreal, – aquela coisa não funcionaria nunca, aquela coisa absurda, 600 porcos, não tinha comida para alimentar 2, mil e tantas cabras... Em Angical por exemplo, fizeram os projetos, e os trabalhadores, todo o ano em vez de tirarem 2 ou 3 ha, em um ano, cada trabalhador fica com 13 ha.

Quando fizeram levantamento pedológico de Angical lá havia 17 tipos de terrenos diferentes. Deve ter sido um trabalho caríssimo, feito por uma firma. Queriam que se se assentasse gente depois que fosse identificado cada lugar, onde fosse latossolo... Isso seria o ideal se nós tivéssemos um lugar como Israel em que a coisa é tão tecnificada que tem primeiro quem identifique até onde é isso, até onde é aquilo. Não é como aqui que ninguém sabe identificar.

Foi depois que contratamos o Vegas então eles começaram a aprender, e ficaram sonhando com isso; mas então como que planta? Aquela gente planta há mais de três mil anos, aquela gente é descendente de rei de Portugal e eles sabem plantar, identificar a área enquanto nós não tivemos esse grau de tecnologia para chegar a isso, identificar a terra... O cacau, você vê, o cidadão chegou lá no século passado e disse: – “Aqui dá cacau, mas naquela esquina não dá”. Então eles plantaram até a outra esquina, assim fizeram, pela intuição e pela madeira que nascia no lugar, coisa que sou capaz de fazer por isso, essa formação eu tenho, e não é de escola.

Então fica uma coisa tão irreal, é o trabalhador a esperar, e quando vão dar as notícias em vez de facilitar, complica.

Havia em Angical uma grande questão com a Monte Tabor. Ela comprou 3.500 ha na mão de Balbino e quando foi tomar posse não pôde tomar posse, porque estavam lá os trabalhadores. Eram 45. Então todas as vezes que eu ia a Angical as reuniões terminavam tarde da noite. Os políticos, médicos, advogados e vereadores a brigar que não era possível, Angical e Barreiras perderam um Hospital da Monte Tabor porque um bocado de gente irresponsável que não quer fazer nada, invasores, entraram na área. Sarney é solicitado pelo Papa, veja bem, chega a ser até folclórico, pelo Papa, para dar um jeito em Barreiras. Ele é solicitado e há uma comunicação. Arruti sabe disso, uma providência para tirar o pessoal da área da Monte Tabor, veio prá qui, e eu só tive um meio, mandar ocupar tudo. Não tinha outro jeito, é criar o problema social, com 500 famílias, dentro da área. Não tinha Monte Tabor, não tinha Sarney, não tinha nada.

Quem é o Presidente da Monte Tabor daqui, Guadenzi, o pai de Sérgio Gaudenzi, repare bem as implicações, Waldir ligado a esse pessoal todo, então ou nós criávamos um fato consumado, ou perderíamos Angical. Foi por isso que o pessoal entrou sem a infraestrutura necessária, para garantir a posse, garantir a produção. Porque no fim eu só me preocupava com a produção, porque eu vi que a comercialização não era tão fácil, por falta nossa, da Secretaria.

Portanto, só tinha um meio: ocupar e criar o fato, pois depois ninguém poderia tirar. A influência era muito grande porque ao lado da Reforma Agrária, ao assentar o parceleiro, arrumar gerente, tinha o lado político em todas as áreas. Almas a mesma coisa. Em todas as áreas havia um problema sério de ocupação. O que o INCRA desapropriava, eventualmente tinha posse, não ocupava, tinha lá dentro alguém, um grupo de pessoas organizado lá dentro.

Nós estávamos sempre atrelados e nos entendendo com o INCRA. O Estado com o pessoal do INTER-BA, da agrimensura, capaz de fazer o trabalho cinco vezes mais barato que o INCRA fazia. O INCRA tinha lá alguém, uma firma e em algumas áreas de trabalho foi feito através dessas firmas. Saia muito caro, esgotava todo o recurso, mas essa coisa andou assim por lá. Nós organizamos o Estado com essa capacidade de fazer agrimensura, pois já fazia e fazia bem melhor, se entendia melhor com o trabalhador, e quem vinha de São Paulo, do Paraná, queria riscar a linha, sem se importar que passasse em cima da casa, ou da roça, ou se tinha água para beber naquela área.

Então nós dependíamos muito do INCRA, recursos muito parcos porque só tínhamos condições de aplicar recursos do PAPP, depois que... Coriolo foi lá em Angical, chegou na casa de um produtor (seu Jesus) viu a fartura, não sei como está lá hoje, mas lá tinha fartura, tinha comida.

Outra dificuldade, é que as pessoas às vezes começam a exigir que em uma área de Reforma Agrária todos os problemas sejam resolvidos: educação, saúde, estradas, e não se lembra que a Reforma Agrária está dentro de um contexto político chamado Brasil. Ninguém pode criar uma ilha de felicidade, com um sistema de comercialização entravado. Não há nenhum agricultor no Brasil satisfeito, nem os latifundiários, a não ser os que estão ganhando dinheiro pela valorização. Mesmo o cacau está lá embaixo, o sisal está lá embaixo, laranja, soja, etc.

Querem que a Reforma Agrária seja um paraíso onde todo mundo viva tocando flauta, as coisas acontecendo, todos os meninos bem vestidos limpinhos e na escola, todas as senhoras grávidas assistidas...

Segunda coisa: o técnico atrapalha muito, quando falo técnico é em tese, é que às vezes ele quer levar ao homem da roça o conforto que ele acha que ninguém pode viver sem ter. Um exemplo, o meu exemplo: estudei numa escola com professora leiga, viajava uma légua para ir, outra para voltar, e levava todo dia para vender 10 litros de leite. Posso não ter aprendido muito, mas tudo que eu tenho hoje de formação ética e devo a esta professora que era completamente analfabeta, mas ela discutia questões como dar lugar à senhora, ao velho, desejar bem ao próximo, discutir o livrinho o “Bom homem Ricardo”. Pois bem, então, as pessoas vão à área, e querem que logo se tenha tudo e aí, tumultuam. Eles já estão com a cabeça feita no consumismo, e aí, dizem: como é que não tem, numa área de Reforma Agrária, uma geladeira para conservar os alimentos? Ah! Conservar alimentos, precisa ter luz elétrica, televisão. Isso não existe, um estágio para daqui 10 anos, 5 anos, 20 anos. Em vez de ajudar que tudo se fortaleça dentro daquela simplicidade. Quero mais que vocês continuem a orientar os trabalhadores a guardarem suas sementes de feijão, de milho, porque o melhor sustento é o antigo. Todo o lavrador guarda a melhor semente, as melhores vagens de feijão, guarda lá no fumeiro. No outro ano tem semente para plantar. Ah, mas essa semente não presta porque não é trabalhada, porque não sei o quê. Pura irrealidade porque no outro ano não tem semente nenhuma, nem a boa nem a ruim porque não chega, porque o governo não providenciou, porque não funciona...

Em Angical, uma vez chegou lá um cidadão orientando os trabalhadores para que o salário fosse alterado. Tinham que receber uma parcela a mais do crédito. Aí eu disse: – Vocês estão fora da realidade, vocês não são empregados, alegam que o pessoal que planta soja está pagando mais, talvez, 20%. Mas a primeira condição para você se capitalizar é você se apropriar do salário, você está funcionando como um proprietário, um pequeno latifundiário que quer viver do trabalho alheio, assalariando sem querer porque foi orientado para isso, como foi orientado para derrubar a área quase toda, quer dizer, ele que tem capacidade de desmatar, 1 ou 2 ha, por ano, desmatar ou 15 ou 20 ha naquela volúpia. Então ele não pode mais limpar. Se der a produção, não tem condições de colher, se colher, não tem condições de preparar, se preparar ele não tem condições de vender, de comercializar, tudo isso a orientação de coisa mal planejada.

– "O que faria para mudar esse processo?"

Olha, eu começaria dando mais poderes aos trabalhadores, para que resolvessem os problemas deles, mais autonomia. Porque aí, confesso, naquilo que a produção entrou na orientação técnica, falhou, mas falhou redondamente. Segundo, talvez eu tivesse me preocupado mais com uma espécie de um curso muito prático lá nas áreas, como eu sempre cobrei, para ver se a gente conseguia transmitir a mensagem de como se deveria agir. Pela pressa e condições ainda de luta tivemos que fazer tudo às carreiras. Em 1963, eu era prefeito, desapropriei uma área e criei uma mini Reforma Agrária. Tinha isso na cabeça desse tempo. Sonhamos muito, elocubramos muito, com a idealização do sonho, que nós sabíamos ser difícil. Por exemplo, quando Waldir brigou com Sarney, o único acesso que eu tinha ao Ministério da Reforma Agrária, foi porque eu fui escolhido coordenador dos Secretários da Reforma do Brasil. Descobrimos que nem a FETAG nem a CONTAG estavam mais interessadas em Reforma Agrária, e esperavam acabar o governo porque o Ministério não tinha nenhuma ligação. Extinguiam o Ministério de Reforma Agrária, o pessoal do INCRA, não satisfeito porque não se ajustava bem com o pessoal do Ministério. Sarney não falava mais de Reforma Agrária, não tinha recurso. Então resolvemos fazer um Fórum Nacional para resgatar a Reforma. Foi aí que começamos, por telefone, por carta, secretário por secretário, conversando. – “Olha, vocês estão com um problema aí, vamos ver se nós nos juntamos?” Conseguimos juntar 8, depois 19, para ver se revitalizava porque ninguém ligava mais e nós aqui, uma meia dúzia com essa vontade de fazer. Por isso eu não saí. Quando Nilo assumiu, e eu deveria ter saído no dia seguinte, ou na véspera, disse: – “Enquanto eu puder fazer alguma coisa, não vou dar uma de malcriado, de herói, então eu vou aguentar”.

Tinha ainda problemas a resolver. Os trabalhadores ocuparam lá em Correntina. Irmã Cecília, que depois foi baleada, Conceição, advogada que ocupava a Secretaria, subia as escadas com um bocado de chocalho, dormia lá no chão. Conceição é uma pessoa muito curiosa, me dizia desaforos, xingava, mas me pediu para ficar.

Uma área de Reforma Agrária é uma escola informal. Ali se presume o técnico ajudando a plantar a semente, o veterinário ensinando a cuidar das criações. De modo que o vizinho, que não é da Reforma Agrária, possa verificar que todos os animais vacinados não adoecem e o dele que não foi vacinado morreu. O combate à praga do milho e feijão, é a técnica localizada dentro da área que se irradia para toda uma região. Uma escola ensinando ali, com o exemplo da Reforma Agrária.

A outra parte é a politização. Acho importante: a noção de cidadania que se presume existir numa Reforma Agrária. As associações, cooperativas, se for o caso, a força da união... Então transmite escolarização política, social para quem está em volta, conscientizando as pessoas. São dois fatores primordiais.

Por mais que pareça incrível, isso pode ser até uma coisa meio chocante, mas até que não se faça uma seleção perfeita, não se deve, no início, ajudar. Precisa haver uma seleção natural, saber quem é o lavrador. Na região do cacau quando os posseiros chegaram não existia banco, estrada, hospital, nada. Quando tem tradição, entra na mata bruta mesmo. Conheço esse Brasil, e na Bahia, novas regiões abertas. Entram na mata, fazem uma clareira e s localizam com a família. Começam a produzir o que comer. No momento em que você começa a facilitar demais, existe uma coisa meio perniciosa, alguns de organizam para cobrar. Não se mexe mais. Aí aparece a coisa politiqueira da nossa esquerda, trabalhando em cima da insatisfação. Em vez de se descobrir aqueles que são lavradores mesmo, não descobrimos e fica muito mascarado. Em Almas vi gente que recebeu o primeiro crédito e comprou um carro velho, queriam tirar o crédito de um, que não comprou aquilo que estava no programa, mas uma pequena bomba para fazer pequena irrigação. Este cidadão está mais certo que nós, pois nenhum técnico ao fazer o programa lembrou de uma pequena bomba, de um cavalo. Vocês botaram não sei quantos porcos, cabras, sem ter ainda condições para criar, e o sujeito se lembrou de comprar uma bomba. Já está irrigando, comendo, enquanto os outros passam dificuldade e querem a outra parcela. Como eles nunca receberam esse tipo de ajuda, tem que ser orientado. Como um menino: se você der muita coisa, ele não vai para canto nenhum, ele atrofia mesmo sua capacidade de sobrevivência. Disse para o pessoal de Angical. – “Vocês se preparem, porque isso vai acabar, vão acabar os créditos, a própria Reforma Agrária periga. Vocês têm que se preocupar para ir em frente sem o Estado. Esse negócio de por qualquer coisa, ocupar o escritório da CAR, lá em Barreiras, ou fazer comissão, porque vocês ainda são bem recebidos, vai chegar em tempo que não vai ter pra quem apelar. Aprendam a viver como os outros lavradores vivem. Os outros são milhões na Bahia, vivendo fora da Reforma Agrária.

O pequeno produtor nessa situação, é melhor que o marginalizado, o que vive debaixo da ponte, porque se você vir o pessoal de Angical, a situação não é tão boa. Mas se comparam com milhares de pessoas que estão por aí afora, a situação é bem melhor. O que não se pode é querer o ideal, é verdade. Os pequenos estão aí numa situação no limite, os da Reforma Agrária também estão numa situação do limite, mais isso ninguém pode modificar porque é o velho contexto. Estamos vivendo dentro de um contexto, e esse contexto tem que ser mudado, quer dizer não podemos ter uma concepção diferente, esperar uma coisa diferente, quando assistimos ao presidente que vai presenciar combate na selva amazônica e manda buscar 4 helicópteros em São Paulo, 4 mil quilômetros para ele se deslocar para a selva. Lá havia helicóptero do exército, mas ele preferiu os outros de São Paulo. O porta-voz, aquele que fala por ele, compra uma garrafa de vinho por 50 mil cruzeiros, não vamos analisar se ele tem ou não, isso para mim já é secundário, mas que estava na cabeça dele. O cidadão vem de Alagoas, chega lá no poder, o que ele vai fazer é ostentar.

Até quando vai permanecer isso? Outra coisa aqui na Bahia: uma ocasião tinha um funcionário, demitido e readmitido umas três vezes, no dia em que ele chegou na Secretaria como chefe, eu sabia que naquele dia ele era o chefe, pela postura e pela roupa. Telefonava para ele, de lá o tom de voz e postura de voz, eu sabia se  era o chefe ou não. No poder o indivíduo se transforma em reis, espiga o peito, muda o tom, tudo nele se modifica, a roupa, o relacionamento, o restaurante, ele passa a viver em outro mundo. Talvez fique com os pés embaixo, mas a cabeça está em outro lugar. Com gente da esquerda, também acontece isso, e como acontece... A volúpia pelo automóvel... Agora isso vai acontecer a vida toda? Não, não vai porque na vida a coisa sobe e desce. Assim, como está, tem que mudar tudo, nós podemos ir levando, empurrando, fazendo o possível, o impossível, distribuindo a terra, ajudando os trabalhadores, dando cidadania a eles, ir tocando, mas sem querer transformar Angical, hoje, naquilo que nós imaginamos. Não pode, porque estamos dentro de um sistema ingrato, e é como se você fizesse uma cirurgia, e lá pela mesa da cirurgia, você não tivesse assepsia, não tivesse nada. Se não fizer, o doente morre. Então vamos arriscar. Mas, não é fácil, precisamos modificar a estrutura. Digo e repito: convivi com gente da melhor qualidade dentro da Secretaria, não me queixo de ninguém, a não ser pontos isolados em que a coisa não andava mesmo.

Uma equipe menor poderia ser a solução, sem espalhar tanto os recursos. Por isso falta educação, falta saúde, as pessoas não se dão, elas não estão a fim. As pessoas se cansam, e quando se faz uma coisa que se gosta a gente não se cansa. Um sujeito que é um cientista, ele amanhece o dia ali, entra pelo dia e pela noite, é capaz de cair, mas as pessoas não se cansam, as pessoas fazem por prazer, ludicamente. Isso não é sonho, isso é realidade. O Gumercindo é um exemplo... Em Angical se mandou fazer o trabalho de topografia, erraram tudo, perderam o dinheiro. O dia em que Maia entrou, ele fazia. As equipes dele, o pessoal não admitia ir para o mato. Como é que o topógrafo não vai para o mato? Só pode trabalhar no mato. É uma resistência ao mato como se fossem heróis. Então esses rapazes vão criar suas equipes, poucas 10, 12 pessoas, eles se instalam numa casa, com uma senhora cozinhando, todo mundo trabalhando, dá estímulos. O dia em que quiser ver sua família você vai, se precisar de qualquer coisa, o médico está aí, isso é compromisso com o trabalho.

É diferente do indivíduo que diz, ah! não fui, diária não sai, não teve carro, não tem hotel. Como você trabalha em Reforma Agrária e fica atrás de hotel? Eu costumava chamar de “as melindrosas” ou o pretexto para não trabalhar ao menor obstáculo.

E ficam os trabalhadores se acabando, e nós gastando uma fábula, sem se multiplicar efetivamente.

Um exemplo disso, é o programa de vacinação dos animais. Eu falo sempre disso porque é uma coisa importante. Ninguém cria galinha em lugar nenhum do mundo sem vacinar. Ninguém cria cabra sem vacinar. Um dia eu chego lá em Andaraí e os trabalhadores tinham comprado 300 ou 500 rezes. Eu chego lá, eles disseram: – “Tem um problema sério aqui, morreram 25 vacas”. Morreram de quê?: – “Morreram de raiva”. Olha, nós somos criminosos, claro que somos, pois nós sabemos, o técnico veterinário sabe que morre e não se vacina. Chego lá em Almas, estavam lá centenas de pintos mortos. Vacinou? Não, a vacina veio mas não deu como vacinar, e acabou morrendo tudo, e perdeu a vacina.

A merenda escolar. Se providenciava a merenda escolar e ela era um veiculo na área, pois se o menino come na escola, já sobra um pouco para o pai em casa. Não sei, não pode, não saiu, não teve carro para levar... E aí fica, o culpado é o governo, falam do governo como se ele fosse uma unidade abstrata. O culpado é Nilo, o culpado é Waldir.

O Estado não, porque o estado somos nós, o estado somos nós, se cada de um de nós cumprisse sua parte, pronto. Mas não existe um compromisso, ou então as pessoas estão em lugar errado. Jairo Sento Sé brigou o tempo todo para nomear o sobrinho para Sento Sé. O outro nomeia o parente ou o cabo eleitoral, pessoa sem qualificação nenhuma, ou sem comprometimento nenhum, e querem que a coisa funcione. Mas não vai funcionar, porque a visão dele é para outra coisa.

Deputados, a rigor, na Assembleia, tinham poucas exceções, gente que queria a Reforma Agrária, mas pouca. Você conta nos dedos, e não enche uma mão. Tinha o pessoal do PT, do PC do B, nós do PMDB que era o partido do governo, mas ninguém do PMDB ia à Secretaria defender os trabalhadores. Um dia na reunião eu disse a Waldir. Eles começaram a me acusar que eu estava tendo uma posição muito estranha. – “Qual de vocês já foi a Secretaria defender o trabalhador? Agora quantos de vocês que eu não vou dizer o nome, que cada um bote a carapuça, foi lá pedir pelos grileiros, quantos? Sendo que um quando saiu com aquela coisa de eu ser candidato, foi a mim e disse: – ‘Olha Euclides, eu não tenho condições de apoiar, porque se eu apoiar eu não sou eleito, porque toda minha área é contra você, porque você ficou do lado dos trabalhadores’”. Então, como se movimenta com uma assembleia dessas?

Com relação aos funcionários, os funcionários são resultado do governo, se somam vão fazendo a cadeia dos funcionários, através da corrupção, através da política, através do desvio de verba, através da preguiça. Quer dizer, é o modelo Antônio Carlos que sucede. Luiz Viana, a assim vai.

Como eu posso dizer que o pessoal da CERB, era preguiçoso, se não tinham recurso nenhum para eles para por as máquinas para funcionar. Então se cria uma coisa, uma massa, que enferruja por si, pesa, desestimula. Chega um momento, cai tudo de novo. Alguns já me disseram, não adianta, fizemos tudo aquilo, e agora, desestimulam, e depois não é só querer, tive muita sorte... Por exemplo, para você encher um tanque desse volume, dessa sala de água, dá um trabalho imenso. Para estragar, basta jogar um rato morto dentro.

Para criar a Reforma Agrária, dá um trabalho doido, depois basta um rato morto. Uma pessoa à frente da Educação que era a coisa fundamental da Reforma Agrária, que qualquer coisa tem que partir da educação, da escola, de escola primária, os costumes, tecnologias, tudo tinha que partir da escola primária. As professoras tinham que ser treinadas, professoras leigas, as formadas não vão. A formada vai para a escola, eu vivi muito isso em menino, ela vai lá e fala para o menino: você precisa aprender a ler e escrever e depois ser um chofer, ir embora daqui, não ficar arrastando cobras pelos pés como seu pai, vivendo como um bicho aí no mato. Você precisa ir embora. Se você não souber ler você continua aí. Enquanto que a professora leiga tem uma formação e uma sabedoria dela, não se compara com a sabedoria de qualquer moça que às vezes foi formada para lá. Pois ela é uma sábia, ela sabe lavar roupas, ela sabe costurar, plantar, colher, fazer chá, benzer, ela diagnostica, se é uma dor, se é um sarampo, enfim essa coisa da professora leiga tem que ser repensada.

Formada não vai, principalmente de fora. Ela não mora lá, vai precisar todo dia de um carro, para levar 5, ou 10 que deve ter hoje lá. Então, trabalhar com esse material sem violentar as coisas deles, com muito tato, sem achar graça, sem rir muito, sem ridicularizar, muitas vezes se estraga todo um trabalho por causa disso, respeitando, sabendo que sabe muito mais que nós.

As dificuldades dos outros Estados eram semelhantes às daqui. Menos Santa Catarina, por causa das escolas técnicas de agricultura, porque de um modo geral eles se queixam de EMATER. Todos se queixam dela, menos Santa Catarina. São Paulo também, mas lá não é EMATER, é outro sistema, mas meio parecido, porque a coisa essencial era a assistência técnica.

O Cabrera é um cidadão que não tem nenhuma sensibilidade para isso, no fundo ele é contra a Reforma Agrária, ele é a favor da agricultura grande, capitalista, porque ele pensa na produtividade. Se é um projeto de exportação então a produtividade é exportar. A agricultura é muito mais do que isso, se onde há a grande agricultura, quando digo grande é de área grande, é a que tem no Japão, na França, onde os agricultores são a classe média respeitada e nobre. Na Itália, Alemanha, Estados Unidos, a agricultura faz parte da terra, essa coisa de grande empresa agrícola já não está funcionando porque já estão quebrando, eles estão saindo. Eu não acredito nisso. Eu acredito na agricultura, no que está sendo feito desde a Mesopotâmia, até hoje está sendo feito no mundo todo. A participação efetiva do agricultor na terra, e não a ausência, porque ele fica, vamos dizer, localizado lá em Uberaba, a coisa do parceiro, ele entra na terra, o outro aluga a terra, o que aluga faz o investimento, ara, aduba, planta, prepara a terra e depois planta um tal de capim. Então você está achando que isso é fabuloso, então isso nunca funciona. A terra tem uma coisa, a tecnologia tem uma coisa. Outro dia ele (Cabrera) apareceu numa máquina enorme, capaz de colher toneladas de arroz e feijão, achando que aquilo é bom para o Brasil. Primeiro, aquela máquina pouquíssima gente pode cobrar aquilo. Depois, a topografia do nordestino não dá para aquilo, tem pedra, a mecanização não tem, não tem óleo, não tem quem cuide daquilo. Nos Estados Unidos se você compra uma máquina pela marca que vende, se dá boa assistência, tudo bem, senão ele compra outra marca. Aqui quebra uma máquina daquela, ninguém vai sair para ir até Angical consertar. Se não tinha dinheiro para comer, para semente, como vai ter dinheiro para comprar uma máquina daquela? Então ficam trabalhando em cima disso, a mecanização, a grande produção.

Eu duvido que a grande propriedade esteja produzindo mais que a pequena, até pouco tempo era a pequena que produzia para abastecer. Segunda coisa é a velha preocupação com a produtividade, é o que eu chamo de viabilidade social, que é melhor eu produzir mais com viabilidade econômica, ou produzir menos com viabilidade social? Um exemplo que se passa no Brasil, que aconteceu na década de 70/80, no Paraná, repare bem: o Paraná tinha o pequeno produtor. De uma hora para outra, o Paraná resolveu se mecanizar e fazer a grande empresa. Foram expulsos do Paraná 1.200.000 milhões produtores. O Estado do Paraná enriqueceu, foi para cima com questões de impostos, de tudo. Pergunta-se, foi solução para quem? Essa é que é a pergunta, é aí que falta a sensibilidade. As pessoas, se voltam para o sistema capitalista, para o lucro, para a modernidade, essa modernidade que está aí. Então as pessoas se mobilizam em torno disso. Todos os candidatos a governo agora, todos se preocuparam com grandes formas, grandes recursos. Mas com 80% dos Estados, que estão lá pelo fundo, divisa com Piauí, naqueles cantos, aquela coisa lá no extremo de Sento Sé, de Xique-Xique Barra, ninguém tem a concepção disso, que é também o Estado... O Estado não é Itabuna, não é a grande indústria, a que se localiza lá no extremo Sul, o Estado é essa coisa toda, essa vida toda que está aí. Então, é a concepção global, nada mais difícil hoje.

E eu tenho receio é da irrigação, fala-se em irrigar milhões de hectares na Bahia, todo mundo começa, então todas as firmas que produziam bomba, começaram a fazer seminários sobre gestão de irrigação. Aí todo mundo vai fazer irrigação. Se você verificar o que tem de canos perdidos, montanhas de canos abandonados, serviu a quem? Está servindo a quem essa irrigação? Então com a grande produção através da irrigação, vai acontecer o quê? Primeiro aquela tecnologia de propaganda... o melhor melão produzido no Brasil é o de Juazeiro, vai até para o exterior. A uva, São Francisco... A quem está servindo esse tipo de exploração? Então nós temos que ter modernidade, mas dentro de seu esquema, de como se avança. Não sou contra a técnica científica, não sou contra a Rússia. Um dos pontos de estrangulamento da Rússia foi a técnica científica atropelada, não havia uma preparação. A Itália onde correu tudo passo a  passo, o Japão... Chegar agora em Angical, com tecnologia pesada, querer portar um trator pesado sem preparar para uma aração, sem preparar técnico para acompanhar a máquina... então como nós nascemos índio, todo mundo anda com cocar na cabeça, querendo mostrar mais colorido na cabeça.

A modernidade é moda, a grande produção, então vamos fazer. A grande discussão que tive com Nilo, que quer fazer a irrigação de 260.000 ha lá no baixio de Irecê, grande investimento, capital japonês, mas como aquela gente vai viver? Aquele povo dali, assalariado, cada vez que entra uma máquina, substitui trabalhador, de 50 a 100 assalariados. Quer dizer, enquanto não tiver emprego para essa gente toda... porque o fundamental é o emprego. Emprego hoje numa sociedade como a nossa é mais importante que educação, que saúde que tudo, porque as pessoas têm que trabalhar. E não é só trabalhar para ter garantido o salário, a farinha de todo dia não, é trabalhar para ter a cabeça limpa, aliviada, tranquila... É questão de vida. Então, à medida que você tem o Paraná lá, com 1.200.000 pessoas expulsas... Isso sem pensar numa maneira mais metafísica, uma maneira mais longa, mais sutil... Mas se você verificar, a Bahia tem hoje menos água de beber do que tinha a 100 anos atrás porque o Rio São Francisco que era aquele caudal de 800 Km, que era uma grande adutora, que sai de lá de Minas e vai até o Atlântico... todo mundo se abastecia no São Francisco. São Francisco hoje tem regiões que nem para beber água serve, toda poluída. O que eu tenho mais medo em Angical, que é o Rio Grande, que é um rio limpo, mas que já está sendo poluído... já começa em Barreiras, aquele rio vai morrer. Almas, a primeira vez que fui em Almas eu bebi água com a mão, daquele riacho, agora não dá mais. Dois anos depois, nem os animais podiam beber. As pessoas falam no grande planalto de Irecê, água de subsolo, aquelas águas todas estão se poluindo. Nós estamos consumindo tudo, o cloro, a celulose, os metais nobres, a própria terra nós estamos estragando.

Uma coisa mais metafísica, a longo prazo, as pessoas dizem ter reservas para não sei quantos mil anos. Tudo bem. Mas compra uma coisa, quanto custa isso. Aqui foi celulose, foi energia, foi plástico, acresceu nesse preço mais 10%. Você vai comprar uma camisa, ela vem embrulhada num papelão tão grande, isso aumenta o preço. Nós estamos destruindo a natureza, nós pensamos que ela é só nossa, mas o que vem depois, como vão ficar? Aí vem a modernidade, e a modernidade, são os efluentes químicos, são o gasto, o consumismo, a propaganda, o cidadão. Nenhum trabalhador rural torra café, compra torrado, gasta energia para torrar porque ninguém quer mais torrar. Nós que vamos para lá levamos nossos hábitos. Não pila mais arroz. A primeira vez que fui em Angical, eu dormi lá. De manhã eu estava ouvindo a cantiga da moça pilando arroz. Vai acabando mesmo. Pó de cominho, já compra pilado, não pila mais.

O pisoteio na região do cacau continua. Tem o “visco” que é um facão que antigamente não quebrava o cabo. Como os de agora não prestam, o trabalhador inventou um meio de colocar um cabo artificial, de arame e chama aquilo de visco, porque não sei...

E a roupa. Eu conheci a região mais bonita da Bahia. Brejão do Ramalho. Você entrava no Ramalho, o trabalhador plantava o algodão, as mulheres fiavam o algodão, teciam no tear, costuravam, desde a roupa fina de mulher, a pouco mais fina, a calça do homem e a coberta. Eles faziam a bebida deles, tinham o feijão, o milho, farinha. Era um povo feliz, alegre, satisfeito. Nas festas bebiam para danar, alegria doida. Aí, um dia, eu cheguei num lugar chamado Barrinha. Estava saindo em Paris, não sei de onde, a moda da minissaia. A minissaia, mas minissaia que eu vi na minha vida, foi em Barrinha. Botam para quebrar mesmo. Então quem vai lucrar com isso. Não se pode acelerar esse processo. Se você for ver quais as áreas que estão se aguentando economicamente, são as áreas em que os trabalhadores invadiram, ocuparam, e não tiveram nenhuma assistência técnica porque eles continuaram com o que faziam. A explorar o bode, o carneiro, a vaca, o plantio de sequeiro, aquela coisa que é grande produção somada, planta soja, planta capim etc. Mas valeu a pena, tanto valeu a pena que estamos aqui hoje. Se não tivesse, nada disso acontecido... e ficou alguma coisa, pois ainda tem uns malucos que queriam que o Secretário de Reforma Agrária fosse candidato.

Tinha Secretário de Justiça, de Transporte, da Fazenda, foram buscar lá na Reforma Agrária, um tabaréu lá do mato. Talvez esse preste, é sinal de que a Secretaria esteve presente. Nas reuniões de secretariado, eu falava: ­– “Como é, isso não pode acontecer, nós estamos em outro regime, não foi isso que nós prometemos ao povo” Ah! Vai privatizar tudo? Também não se pode ir privatizando tudo. Tem que ter cautela com isso, não pode ser assim. Aí vieram os outros secretários, mas não pode, mas não é o mundo todo, não é a Bahia. Vocês conhecem Belmonte? Não conhecemos. O Estado não é isso que vocês estão enxergando, vocês não veem até a periferia de Salvador, vocês não conhecem. Não andam, não têm uma concepção... a mentalidade é urbanista.

A importância de se ressaltar as dificuldades entre as secretarias, entre os órgãos... Se tivesse existido uma equipe técnica menor, mas mais comprometida, teria sido diferente. Mas ficava a EMATER-BA querendo atrapalhar a CAR, porque se a CAR aparecesse o trabalho era da CAR, e não era dela. Se a estrada feita pela Secretaria de Transporte ia aparecer na Secretaria de Reforma Agrária, e não na dela.

Nós conversamos muito, fizemos isso na medida do possível, mas tinha necessidade de um contato no dia a dia, mais direto, para ver se conseguia embutir essa ideia, se bem que as pessoas são insensíveis, não adianta. Você não consegue passar a mensagem, e quando entra o elemento político (quando eu digo político, agora estou me referindo ao político partidário mesmo, mas política pequena). Os deputados não participam, eles nem entendem. Antônio Honorato, deputado, diz, a CAR, comprou uma área, mas não foi através dele então aí ele se zanga e quer que o prefeito desaproprie uma área que foi destinada a mulheres, aí não pode se zangar, é uma coisa estúpida.

A primeira vez que fui à região de Sobradinho, eu cheguei em Casa Nova e procurei a presidente de uma associação, era uma cooperativa e fui falar com ela. A noite eu quis fazer o trabalho de convivência política porque não tinha intenção de jogar os deputados contra o governo. Fui visitá-lo e ele não quis me receber. – “O senhor veio aqui e primeiro procurou uma presidente de associação de sindicato e não veio me ver, não tenho nada para tratar com o senhor.” Foi assim mesmo que ele falou, fez um escarcéu diante de umas 70 pessoas. – “Nunca aconteceu isso em Casa Nova, não foi para isso que votei nesse governo”.

Olha, se eu era Secretário do Cooperativismo, tinha que procurar a cooperativa, os trabalhadores. Eles sabiam minha posição desde o começo. Por exemplo, em Sento Sé, quando eu fui a primeira vez, um trabalhador me disse: ­– “Dr. eu quero saber agora que governo é esse, porque o lado mais difícil do governo de Waldir foi Sobradinho, porque esta gente manda há mais de 200 anos. Historicamente todos de uma mesma região. João Durval demitiu todo o quadro em represália, porque eles ficaram do lado de Waldir. Quando Waldir assume, o critério de nomeação das autoridades, era o critério do deputado. Eu nem sei se a essa altura poderia ser outro. Então no momento que esse assume, todo aquele povo que foi demitido, que perseguiu o trabalhador, delegado de escola, toda essa gente volta. Então, o trabalhador lá do sindicato chega para mim e diz: –“Dr. esse delegado foi quem espancou meu pai, fulano de tal, foi que nem sei o quê”. Como volta todo mundo, e nós que votamos no governo, como nós ficamos. Então chega um trabalhador, e disse, – “Dr. agora eu quero testar esse governo. Dr. Sento Sé que é deputado do PMDB, invadiu minha terra, e está fazendo uma cerca e eu quero ver o que o Sr. vai fazer”. Aí, você vê um deputado do governo nas terras deles com a mentalidade que eles têm. Aí, quando eu volto, o Presidente da Assembleia me chama e diz em tom de ameaça: “Soube que o senhor foi na região de Juazeiro e Sobradinho, não procurou os companheiros, o deputado fulano está insatisfeito e diz que vai deixar o partido, romper com o governo.”

Eu digo, a minha área não é área política. Eu fui lá para ver as comunidades, mas a próxima vez que eu for lá eu vou visitar o deputado Sento Sé.

Na outra vez organizei para que os trabalhadores fizessem uma grande assembleia, primeira coisa que o trabalhador cobrou foi o fato da denúncia anterior. – “Dr. quero saber o que o senhor fez da denúncia que eu fiz do deputado Sento Sé.” O deputado presente, aí eu disse: – “Deputado, o Sr. responde para o trabalhador a pergunta dele, que eu não tenho condições de responder?” Ele disse, – “Oh! Sim, já mandei desmanchar a cerca”. O trabalhador, muito malcriado, respondeu: – “O Sr. não precisa desmanchar que nós já fizemos, quem mandou fui eu.”

Quer dizer, antes havia o confronto, a minha maneira de agir é a seguinte, eu não ofereço resistência, quando eu estive com o deputado, eu disse: – “Eu não entendi porque o Sr. disse aquilo”, e ele acabou dizendo que queria pedir desculpas.

Em outra ocasião, eu cheguei em Monte Santo. Eu fui com as irmãs, com o padre, os trabalhadores. Em Monte Santo tem dois padres que defendem os trabalhadores, só que os trabalhadores de um não se dão com os trabalhadores do outro. O padre que defende os daqui, não se dá com o padre de lá, um não assiste a missa do outro. Levei dois dias sem comer, pois eu almoçava na casa de um ou de outro. Se eu almoçasse em qualquer um dos dois, eu estaria rompendo com os dois. Saio com esse povo em grupo, chego em determinada área, sou recebido de escopeta. Eu conversei com ele, abaixou a arma. Quando de noite eu procurei saber quem era, era o presidente do PMDB. Gente de deputado daqui que no mesmo dia telefonava aflito.

Então você repare bem, a contradição de um governo que se propõe ser um governo popular, com a convivência com esse tipo de gente.

 

 

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).