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Entrevista: “Emprego é a maior prioridade”

Euclides Neto

em “A enxada” - Folha de Santa Cruz - Santa Cruz Cabrália - Ba - 1997

 

EUCLIDES NETO: “Emprego é a maior prioridade”

Folha: Qual é o papel da mulher na reforma agrária?

Euclides Neto: A mulher é quem enfrenta a polícia quando a repressão chega nas invasões e procura o marido. Quando têm de fugir para o mato, ela também vai com os filhos, mas quando volta, de tardinha, o marido chega em casa e dorme, ela vai para a cozinha fazer comida, cuidar dos meninos. Ela planta e colhe enquanto o marido está na luta, mas quando alguém chega lá e pergunta pela plantação, o marido diz orgulhoso que ele plantou.

Folha: É disso que o sr. trata no livro “A enxada”.

Euclides Neto: Trata-se de um livro muito singelo, talvez até pudesse ser classificado como um cordel porque eu fiz o possível para transformar o romance em alguma coisa que pudesse ser entendido pelas pessoas simples. É, na verdade, a defesa de uma cidadã, que tendo saído da roça passa a morar na cidade, onde, evidente, não tinha um preparo capaz de fazer um serviço delicado e, depois de sofrer muito na cidade, consegue emprego de doméstica. Ao varrer uma casa quebra, involuntariamente, um vaso chinês. Então a patroa a despede com certa grosseria e diz: olha você só serve mesmo para a enxada. Ela, já sofrida porque a polícia havia matado dois filhos e as três meninas estavam prostituídas, o desespero desperta nela a lembrança da enxada, e ela faz o caminho de volta ao meio rural. Trabalhando às margens da estrada, já distante de Jequié, aproveitando os terrenos nos acostamentos, como aqui existem muitos (eu reparei na viagem), ela é capaz de resgatar toda a família, trazendo as filhas inclusive, e aí uma demonstração de que na terra essa mulher é uma sábia. Essa mulher que era incapaz de varrer uma casa na cidade tinha uma sabedoria milenar, através

dos árabes, através de todas as raças que compuseram o português. Até na pré-história a mulher já trabalhava na agricultura. Ela que era incapaz de trabalhar na cidade passa a ser entendida naquilo de plantar feijão, colher, vender, de pesquisar o mercado. De saber que deve plantar o milho no São João, quiabo para a quaresma.

Folha: O sr. acredita que depois da marcha dos sem-terra o governo começa a ver a reforma agrária como investimento? Até o senador Antônio Carlos já admite que o movimento é justo...

Euclides Neto: Quanto ao senador ACM eu tenho a acrescentar que ele é de uma habilidade política extraordinária. Ele é um adesista mor, aderiu à Revolução, aderiu a Tancredo, e agora está aderindo a um movimento que é o do Brasil, não tem retorno. Então verifica que não adianta fazer aquilo que ele sempre fez contra a Reforma Agrária da Bahia, a primeira do Brasil, quando tomou posse no governo da Bahia. Eu também fui coordenador nacional dos secretários de Reforma Agrária de todos os estados do Brasil. Esse cidadão que extingue uma secretaria de Reforma Agrária não tem nenhuma vocação, mas é que ele acha (e aí está sua observação), que o movimento é irreversível. E ele é um adesista contumaz das causas ganhas, porque é muito esperto, e conta com a mídia, que distorce às vezes, então ele aderiu a uma conveniência política. Se amanhã, por hipótese, se instalasse no Brasil um regime muçulmano, ele estaria aderindo ao Alcorão. É político sequioso pelo poder. É uma figura.

Folha: O sr., no entanto, sempre acreditou que a saída é a reforma agrária...

Euclides Neto: Quanto a reforma agrária, não há no Brasil, não houve no mundo inteiro uma solução social sem reforma agrária. Os Estados Unidos fizeram reforma agrária em 1866. César, em Roma, 29 anos antes de Cristo, já distribuía terras para 100 mil famílias. O presidente Fernando Henrique está pretendendo distribuir este ano para 80 mil famílias. César, com uma população irrisória, distribuía para 100 mil famílias.

Folha: A Reforma de Fernando Henrique deveria ter acontecido após abolição?

Euclides Neto: A reforma agrária vem de 486 antes de Cristo. E no Brasil, o grande problema nacional é o emprego. Não tem nada mais importante no Brasil. Eu chego a dizer que está antes da educação e da saúde. Porque nosso grande drama hoje são os 32 milhões de queimados vivos. Não se chama mais de excluídos. É o queimado vivo. Essa gente que não tem casa, não tem comida, não tem emprego, não tem liberdade de comer, não tem absolutamente nada. Sendo a maneira mais fácil de criar emprego a reforma agrária.

Folha: Qual é o custo da geração de um emprego via reforma agrária?

Euclides Neto: O emprego na reforma agrária bem administrada custa 10 mil dólares, na indústria custa 100 mil dólares. Além de fixar o cidadão no meio ambiente, além de não poluir tanto com a concentração humana nas grandes cidades, além de dar a liberdade natural ao homem de criar seu animal, de exercer sua vocação, de ter uma alimentação saudável. Com isso não se quer dizer que a esse homem não se leve a escola. Tem de levar. Tem de levar a saúde. Mas, que adianta dar saúde se esse homem vai passar fome? Ele nem aprende nem fica bom da doença que por ventura tenha.

Folha: O governo questiona o custo de um assentamento, mas o sr. tem experiência de quando foi prefeito de Ipiaú. O sr. acha que ainda hoje é possível fazer reforma agrária nos limites do município?

Euclides Neto: Se o prefeito tomasse uma iniciativa dessa ele estaria fazendo uma grande economia para o município, porque também o grande problema do município hoje é a fome, é o aglomerado humano nas periferias, de onde vem a fome, a violência. Ora, se o prefeito entendesse de fazer reforma agrária e a fizesse, poderia inclusive, dirigir até o que plantar, fugindo dessa coisa da globalização. E nós somos índios ainda, e nós gostamos de botar o penacho na cabeça. Se pudéssemos, ainda hoje botaríamos o penacho na cabeça. Então quando aparece globalização, todo mundo quer globalização. Turismo, todo mundo quer fazer turismo. Industrialização, todo mundo quer fazer. É a moda.

Folha - Uma prefeitura tem condição de fazer reforma agrária?

Euclides Neto: Reforma agrária é muito fácil. Eu tenho escrito inclusive no jornal A Tarde, porque o cidadão está querendo ir para a terra. Ele é simples. A vida dele é de miséria, de sofrimento, de fome, de falta de acomodação, de morada. Se lhe der uma terra viável, que é outra história, ele produz. Fala-se muito que tem de dar saúde, estrada, iluminação, piscina. Ora, aquele cidadão que nunca teve uma casa coberta de telha, que nunca teve um emprego certo, se ele encontra um pedaço de terra e ele é agricultor, aí está o segredo, a seleção de quem vai receber a terra. Ele é capaz de fazer a terra produzir só com os braços. Porque toda região pioneira do Brasil, inclusive Eunápolis, foi feita sem banco, sem estradas, sem luz elétrica, sem médico, sem escola. As pessoas chegaram, derrubaram a mata e plantaram. Fizeram reforma agrária, naquela época, em 1963, desembocando em 1964. Imagine como o prefeito da época não passou no mito do Exército.

Folha: O sr. passou muito mal, não é mesmo?

Euclides Neto: Eu passei mal, mas digo também que adquiri uma boa experiência.

Folha: A repressão foi em cima do sr...

Euclides Neto: É. Foi uma loucura para explicar aquilo tudo e, por cima, logo em seguida o Exército publicava uma nota. Só agora aparece uma boa experiência de reforma agrária. Só agora, dois anos depois, querendo creditar ao Exército aquela experiência pela qual eu tinha respondido processo. Então, no momento em que se dá uma terra viável e aí está outro segredo. Terra que tenha chuva. Terra que produza. Não é botar num grande deserto. A ajuda deve vir, mas o segredo da escolha do homem que tenha efetivamente experiência na agricultura, que seja lavrador, que tenha tradição agrícola.

Folha: Há muita crítica sobre os aproveitadores do movimento.

Euclides Neto: Claro. O movimento dos trabalhadores não é o convento das freiras descalças, por exemplo. Lá existem pessoas que também querem se aproveitar, sobretudo com o exemplo que vem de cima. Se um deputado quer receber 200 mil reais para votar num projeto. Se os deputados fazem do orçamento um negócio, uma transação. Se os escândalos estão todos aí abertos, essa coisa vai descendo e chega até o guarda de trânsito.

Folha: Qual é a experiência com a Fazenda do Povo de Ipiaú?

Euclides Neto: A Fazenda do Povo já está na geração de bisnetos. Você encontra meninos de três anos trabalhando com a sua própria horta. A escola é feita de tal forma que o horário é feito de acordo com a roça. Se está na roça até 10 horas, depois disso ele vai para a escola. Se fica na escola até 16 horas e precisa voltar para o trato do plantio, ele volta. A escola é integrada, onde a professora sabe escrever chuchu, mas sabe, sobretudo, plantar chuchu. Isso é fundamental. E como eu tenho esta experiência, eu nego tudo aquilo que dizem, que o pessoal não quer trabalhar.

Folha: E o Projeto Fazenda do Povo alcançou seu objetivo?

Euclides Neto: Ipiaú não é o ideal, e o que se fala sobre reforma agrária por aí não é ideal, porque o contexto da reforma agrária está no contexto nacional. O cidadão vai na área de reforma agrária e quer que esteja uma beleza. Às vezes não está tanto, porque a agricultura está num contexto. Quem lida com agricultura no Brasil sabe que não está bem, que é uma atividade sujeita a intempéries, juros, comercialização, seca. O cidadão da reforma agrária está sujeito a tudo isso. Ele não pode ser uma coisa separada do contexto agrícola do país. Veja agora os plantadores de arroz do Rio Grande do Sul, estão todos falidos. Aí eu volto aos custos. Não se pode pretender fazer reforma agrária como se fez em Israel, onde o Estado criou os kibutz. Mas Israel contava, primeiro, com toda a pesquisa do mundo, porque todos os judeus estavam em grandes universidades mundiais. Israel contava com todos os recursos, porque os judeus estão à frente dos grandes conglomerados bancários mundiais. Israel tinha uma vontade de demonstrar que é um povo capaz. Nós não temos dinheiro, não temos tecnologia, é essa vontade às avessas. Não querem reforma agrária.

 

 

 

 

 

 

 

 

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).