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Autor não identificado para Euclides Neto

Carta em “Os magros” - carta - Ipiaú - 1957

Caro colega e amigo Euclides Teixeira Neto:

O romance Os negros*, que sua confiança em ilusória aptidão minha me submete a um juízo, envolve, na aparência literária verdadeiramente específi ca, como impecável expressão verbal de emoções estéticas, oportuníssimo ensaio de nossa sociologia.

A crítica científica de dados realces da estrutura nacional dá relevo a que, se já não somos de todo uma coletividade de latifundiários, es- cravocratas e monocultores, ainda mantemos inegavelmente um resto hereditário de tão triste condição.

Alternando, num plano lógico de elementos proporcionais, em lin- guagem correntia, cativante, escorreita e com visível timbre pessoal do autor, — o suposto “gozo da vida” do nosso “fazendeiro rico”, iludente da boa fé e fujão da palermice de uma esposa inculta, e que voa atrás e revoa em torno da cupidez, — com o sofrimento irremediável dos agregados dele, os quais, “de sol nado a sol posto”, entre fome e sede, banhados de suor, lhe amainam a terra, lançam nela a semente, cuidam das árvores e lhes colhem os frutos, no desespero de não salvarem da morte um fi lho pequenino: alternando com a desventura a megalomania, o livro focaliza um regime de exploração do homem pelo homem — etapa primitiva da evolução social.

Nesse filmar a norma comum da nossa economia agrária, está a primeira característica de brasilidade, especialmente baiana da obra. Entram pelos olhos do leitor menos arguto a injustiça do infortúnio na provação de todas as necessidades vitais, — e a insensibilidade, diz- -se melhor a inconsciência da fruição desfrutável do que a civilização relega ao plano inferior dos instintos egoísticos.

Naquela mãe sem parto, embelecada com o dispêndio pecuniário de consultas, receitas e dietas, para a boneca, em berço de luxo com aias de mimo, e aqueloutra sem sequer o caixão de “anjo” para o fi lhinho morto à míngua de alimento, vestuário e remédio, — só não as vê, na vida do campo, quem fecha os olhos à evidência da realidade, e só não se compungem, ante o quadro, os corações empedernidos. Mas, nesse refl etir o estilo da nossa existência no interior, há rebate da miséria, despertando a piedade humana, que não isola o trabalho na leitura dos conterrâneos do autor.

Levado em conta o sopro benfazejo de socialização, que agita o mundo, o romance tem ainda o mérito da oportunidade e da generalidade das ideias e sentimentos, que reflete.

Quanto à arte literária, ou seja, as boas letras — da pureza idiomática ao liame racional dos pensamentos, tudo em termos de satisfação ao desejo do belo, especialmente adido à literatura —, não vislumbro defei- to, carente de reparo. Atende o livro a todos os requisitos da estilística.

Entretanto, na reabilitação do nosso herói do mato — escopo altruís- tico do autor —, eu não aplaudiria a tendência, tão em voga do regiona- lismo, a fotografar os erros de pronúncia do homem rústico, jejuno de instrução, — quando a fi dalgotes de unhas encardidas, nas Capitais, se dispensam altos impostos sobre carros de superluxo, e se dão sinecuras de pingues ordenados a barregãs de politicoides.

Guardaria a fidelidade que fosse capaz, nas reproduções dos vícios de linguagem, para apreciar a “literatura” de suco e gasto de certos fregueses das Editoras, que, por conta própria, como lhes sai do bestunto ornado de encômios, começam períodos escrevendo, por exemplo: “EVEM”.

Quem já viu o verbo evir? Haverá ignaros de que é a rapidez da pronúncia das vogais A - I que gera o som aproximado de E na expressão AÍ VEM ?

Congratulo-me sinceramente com o colega, pela felicidade do tema e perfeição de acabamento de seu precioso romance.

Colega e amigo,
Assinatura não identificada

ilustração: Adrianne Gallinari
Autor não identificado: