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A abertura de um ciclo

Jorge de Souza Araújo

Apresentação em “Birimbau” - segunda edição - 2012

Com esta obra de estreia (Salvador: Saga, 1946), ora em muito especial oportunidade de relançamento, Euclides Neto não apenas descreve as profundezas da vida rural no sul da Bahia como antecipa um fluxo contínuo de apontamentos de insuportáveis desigualdades nos jogos de cena capital versus trabalho que, ainda hoje, indignam, inviabilizam e desconcertam a harmonia e o equilíbrio social nas regiões agropastoris do Brasil. Já na capa do livro, sobreposta à ilustração da paisagem física, social e humana do campo, trecho de um romance em processo de escrita pelo protagonista antecipa os espectros temáticos de desencontros da obra: “Nasciam nas tarimbas, cresciam na lama, deixavam as forças nas roças, morriam à míngua. Eram enterrados nos cacaueiros”. O protagonista, Mário, é filho e herdeiro de fazendeiros de cacau. Estudante de direito em Salvador, retorna à ambiência da infância, refugiado para escrever um romance de que já tem prontos alguns capítulos e cujo estilo rivaliza com o que lhe narra a trajetória de retornado, já adulto, sobretudo na prosódia narrativa transparente, de períodos curtos e frase direta e enxuta.

Os capítulos de Birimbau alternam a narração em terceira e primeira pessoa. As ações se passam na região de Ibitupã, na confluência dos rios das Contas e da Água Branca, e o cenário é praticamente o mesmo, no passado e no presente da ação. Os relatos se equivalem em conteúdo, fixidez técnica e estilística, demarcando margens de suportes sociológicos e psicológicos. Também em ambos, o tempo é de uma épica dos princípios e evolução da colonização cacaueira, oferecendo nuances aos caracteres morfológicos das fronteiras endógenas e exógenas, aliás, já oferecidas antes por Jorge Amado em Terras do Sem-Fim, de 1942. Na versão de 1946, uma curiosidade gráfica chamava a atenção nos dois discursos. Tanto o Birimbau como o romance gestado pelo protagonista suprimiam a letra h no início de palavras como (h)orroroso, (h)omens, (h)istória, (h)oje etc. Outra curiosidade foi a acusada pelo satírico Sílvio Valente: no romance de estreia de Euclides Neto, tanta era a intermitência das chuvas que o leitor saía do texto quase molhado. Na presente edição (deste 2012 de químicas e ontológicas biopoliticadiversidades), por revisão processada pelo próprio Euclides, atualiza-se a ortografia, mas as chuvas permanecem, cuja intensidade em 1946 muito estranharia ao complexo universo de hoje, sacudido o sul da Bahia pelo mais terrível e endêmico ciclo de desagregamentos.

Chamemos ao relato de Birimbau um macrotexto e à escrita do protagonista Mário um microtexto. Em ambos prolifera a prosódia de naturalismo fonético no registro das falas. Há um nítido propósito estrutural no romance de Euclides Neto: fazer de Birimbau um entrecruzamento dialógico entre as narrativas. O núcleo do relato escrito de Mário é uma vendola no arruado primitivo de Tesouras (hoje Ibirataia), emergindo da mata e da chuva a floração do cacauais e dos sonhos. A impressão predominante é de que Mário monta seu romance mentalmente, sem dar-lhe a forma gráfica imediata. A força impressionista da memória é coadjuvante da nostalgia de um tempo de infância que faz o narrador se lastimar: “Sinto secar no coração toda a alegria de viver o presente” (op. cit., p. 83).

Tanto no micro quanto no macrotexto, descreve-se a vida de duro labor dos nativos, trabalhadores, alugados, agregados, vendeiros, migrantes temporários no entorno de Tesouras e arredores da cultura do cacau, bem como o que cerca os costumes dessa cultura, a exemplo de abusões e bruxedos circulares como o do temerário Romãozinho, atormentado e atormentando após a praga rogada pela mãe. Da mesma forma têm prestígio os recontados do folclore rural do sul da Bahia, repercussões do imginário popular reverberadas pelo contador de histórias Mata-Onça. Mário reconstitui memorial e proustianamente as instâncias de sua infância na roça e na vila, com acúmulo de imagens sutis, de sentenças, frases, períodos que se encadeiam, enumerando intensidades dramáticas e telúricas.

O primeiro romance de Euclides Neto é assim bem-composto em sua estrutura interna, disciplinados sintaticamente e explodindo de viço humanista e sensorial. Não teve a repercussão que merecia ao tempo de sua publicação, mas se impõe, a uma leitura atenta, como referência obrigatória da literatura brasileira dos anos 40 pela força descritiva da vida nas fazendas e vilas cacaueiras dos primeiros tempos da saga. O quadro neorrealista como que documenta a dura vida do eito convivendo com as imagens líricas da contemplação da paisagem social e humana da meninice do protagonista. O ciclo perverso da exploração econômica do trabalho é revelado em cores tão vivas quanto perturbadoras.

Os meninos cresciam dentro da lama. Nenhum possuía tamancos. Os pés chatos eram pés de bicho. Só vestiam roupas quando estavam crescidos e botavam um chibute no quarto. Iam desde cedo deixando as forças nas roças. Cresciam. Ficavam rapazes. Casavam-se. Outros meninos nasciam como filhos de bananeira. A família grande. Crianças dormindo amontoadas como porcos em noites de chuva. Era uma gente que não tinha nada. Mas ninguém se revoltava [...] Mas toda a miséria não secava a alegria daqueles corações [...] Bois mansos que se puxavam pela venta.

A alternância de planos descritivos dos confrontos realidade/ beleza obedece a um programa mínimo de compensações, ainda que antitéticas: “Na casa da fazenda os homens empapados de suor, fediam. Mas os lírios do riacho eram cheirosos. Nasciam na lama e davam flores brancas como as penas das garças”. O dialogismo intercomplementar dos dois relatos de Birimbau é acrescido de uma adequada decisão dos narradores, a terceira pessoa de Birimbau e a primeira do romance in progress de Mário. O onipotente narrador de Birimbau busca a neutralidade conveniente ao neorrealismo que intenta, enquanto o impressionismo/ expressionismo do microtexto investe no resgate memorial.

Mas Euclides Neto se confrange diante do desgaste das forças do trabalhador no eito da lavoura do cacau, assim como outros tantos desgastes produzidos e repercutidos nas circunstâncias afetivas e telúricas que o protagonista não consegue arribar de si no adulto Mário. Por isso ele sucumbe ao pathos de uma saudade de si mesmo no reencontro com o ambiente que deixaria para voltar à capital e aos estudos de direito. Menino de engenho, ou, mais adequadamente, um Moleque Ricardo do cacau desvelando e despedindo-se da paisagem estremecida, o protagonista-romancista Mário cede a voz ao narrador de Birimbau, que compara “o coração do estufeiro” ao de “uma cabaça de cacau madura”. Por isso, permanece o narrador do macrotexto, “o estudante sentia o coração pisado... Estava deixando toda a infância naquelas encostas, nas roças, nas matarias”. Ao intento de recuperar na infância o melhor de sua existência, escrevendo o romance como identidade idílica, o protagonista sente que a perde junto com a despedida da paisagem. E isso é reconhecido pelo macronarrador, que assinala e conclui o relato: “A cancela bateu. O eco ficou perdido dentro da mata...”

Dissemos no começo que Birimbau abriria um ciclo prosódico com desdobramentos em outras obras de Euclides Neto. Os magros, de 1961, assinala o retorno à temática de ambiência e foco narrativos sinalizando contínuos sequenciais de Birimbau. Abraçando um rigor ostensivo de observação direta do real, que mimetiza em seus romances do povo, Euclides permanece na trincheira da sinceridade honesta de quem produz literatura sem aspas. Os magros acrescenta uma personalidade discursiva mais convincente na composição dos quadros dramáticos do agregado João e sua família desvalida, em tudo diversos daqueles quadros do mundo burguês e pueril dos patrões vivendo ócios exasperados em Salvador.

Cada qual com seus fetiches, Euclides Neto em Os magros retrata criaturas humanas com tanta intensidade que saímos da leitura do romance compartilhando-lhes o conhecimento como se fossem nossos vizinhos. João e os seus são trastes sem qualquer vestígio de humanidade nem (pior ainda) cidadania. Ambiência de teatro do absurdo, de horror grotesco, o romance reproduz hostilidade e desmoralização dos médicos, bem como o conformismo pusilânime dos fracos. O narrador rasga a cicatriz social, reacendendo a ferida que fede a fécio de gangrena. As hipérboles do texto são produzidas pela indignação autoral ante o grosseiro paralelismo das desproporções. O mundo refletido em Os magros parece dividido consensualmente entre exploradores e explorados, sem as cláusulas de barreira de uma legítima justiça que restabeleça o valor social do trabalho.

Em O patrão, de 1978, quando os tempos e ganhos na relação trabalhista já serão um pouco melhores, se não chegam ao absolutismo feudal tratado nos anteriores Birimbau e Os magros, este ainda se mantém, disfarçado em dissimulações e desmandos. A paisagem rural, predominante, desloca-se do cacau para o pastoreio do gado, na mesma região sul-baiana. Vocabulário e diálogos vivos reproduzem e ilustram a presteza narrativa, que não perde o humor de motejo descontraído, o que se acentua na movimentação dialógica de sabedoria entre comprador e vendedor de gado, duelando para ver quem vence nos argumentos e na operação.

O estilo raro e requintado de Euclides Neto – que de tudo conhece na extensa geografia (física, humana, ecológica, psicológica) do sul da Bahia, o que o afirma legítimo perpetuador da grandeza épica emersa de Amado e Adonias e ampliada (como glosa) de Guimarães Rosa, Herberto Sales e Osório Alves de Castro – afirma parentesco com a estilística narrativa desses seus parceiros malungos, percorrendo lembranças intrínseco-textuais desde Graciliano Ramos, passando por Mário Palmério e o José Cândido de Carvalho de O coronel e o lobisomem. Provam-no o ritmo e o rito seguidos por Euclides no extraordinário Comercinho do Poço Fundo, de um coloquialismo particularmente contagiante quando o narrador se põe de intimidades para com o leitor, quase mimando-o na adoção de um estilo que diz ser “supermercadinho bocó de porta e janela de arraial”.

A caleidoscópica galeria d’Os genros (1981) dá sequência ao multímodo, dinâmico, galhofeiro e profundamente humano universo ficcional de Euclides Neto. Drama e humor se atam as mãos na composição de uma nova expressividade textual, perfilando situações tão multiformes que não surpreenderiam se com Os genros estivéssemos em face de um novo modelo de armar relatos, novo e já tão velho quanto o derivário Boccaccio e suas mais que derivárias jornadas para divertir a epidemia de febres que a muitos matava na Itália do século 14. Entre os tipos consagrados de genros aqui abordados, há os operosos e trabalhadores, e há os estroinas, oportunistas, encrenqueiros, verrinosos, submissos, pusilânimes e conformados.

De volta aos entrechoques e conflitos do fenômeno agropastoril demarcado entre o sul e o sudoeste da Bahia, Euclides Neto retrataria sem disfarces um coronel (e político que chega a deputado) desprovido de resquícios morais em Machombongo (1986), romance que reúne sociologia e psicologia, dispondo o autor a um perfil painelista, melhor ainda, um costumbrista de contornos sutis. Não sendo um escritor urbano nem testemunha inconsciente de aparatos psicanalíticos circundando a personalidade humana, Euclides Neto é uma espécie de Zola rural, volta e meia convertido em Balzac, pois que, neorrealista, não desdoira descrever a sociologia da comédia humana recheada de desencontros. Mimético da observância do real transfigurado, o romancista de Ipiaú não contempla a realidade ofuscado pela beleza ou pela apatia, mas descrevendo-a, ficcionalizando-a com a rudeza dos instrumentos de análise lateral e perpendicular, acientífica porque literária, estética, intimista (lírica até) da épica contemporânea.

É, finalmente, com A enxada e a mulher que venceu o próprio destino (1991) que Euclides retoma definitivamente a interlocução temática com Birimbau, privilegiando, uma vez mais, o universo sociológico e psicológico dos despossuídos. Descreve a saga de Albertina, uma anti-Medéia, alheia a um destino adverso, superando-o pela fidelidade a si mesma e crença em seu mais autoconcentrado papel: lavrar a terra, criar os filhos, elevar-se acima dos obstáculos, tendo como figuração simbólica a enxada. Reflete os métodos urbanos de exclusão dos mais fracos através da troça autoritária do parcialismo entreguista, do oportunismo rasteiro e do abatimento ostensivo ao quase nenhum estatuto de resistência moral dos pobres. Aos magros só resta o confronto inconsciente ante os duelos entre a opulência alienada e a carência absoluta. Mas há espaço para surpresas no último romance de Euclides Neto. Porque a cabra Formosa e a cadela Cholinha (a Baleia dos novos Fabianos) conseguem sobreviver, e sua dona – a heroína que ultrapassa o legado do pária, transformando-se em efígie social ascendente, tendo na posse da enxada a fábula alegórica do equilíbrio em sociedade – torna-se a Mãe Coragem entre os servos da gleba sul-baiana. Como Baleia em Vidas secas, Cholinha terá a dimensão exata de mais uma autêntica personagem.

Assim, e desde este Birimbau que em tão boa hora se republica, Euclides Neto fixa com lucidez e graça irônica o espectro sociológico que erigiu e também ajudou a arruinar a região cacaueira da Bahia, pondo em incômoda e sistemática evidência os males da dispersão na atividade econômica. Os finais insólitos de cada jornada narrativa de Euclides indiciam o romancista que se supera na joalheria prosódica, enriquecida de um ludismo metafórico e figuras de estilo que tornam seu texto singular e originalíssimo. Verdadeiro tratado sobre os estatutos das mediocracias no contexto histórico e social do sul da Bahia, a obra de Euclides Neto é metonímica do que acontece em outros territórios, pragas e lavouras. A vocação foliculária da narrativa aos poucos se desvenda. Sua matéria-prima é a vida e suas circunstâncias aparentes ou remotas, aderentes ou esquivas, como os espinhos-malícias da região natal que inspirou o romancista.

ilustração: Adrianne Gallinari
Jorge de Souza Araújo
Jorge de Souza Araújo: Professor titular de Literatura Brasileira da Universidade Estadual de Feira de Santana. Poeta, ficcionista e estudioso da Literatura Baiana.