Vida de cão
Euclides Neto
A TARDE - Salvador - BA - 1993
Um bisonho secretário do Bem-Estar Social interiorano atende no seu modesto gabinete.
Chega o cidadão lastimando-se que seu burro de nome Roxinho está com uma bicheira na oiça esquerda. Pede providências. Os incautos imaginam ser da alçada do secretário de saúde. Afinal, trata-se de doença. Mas remeter tal cliente para um médico receitar significa inimizade pelo resto dos tempos. Além do mais, compete à Secretaria do Bem-Estar Social da roça resolver todos os assuntos que não têm pasta definida.
Claro que Roxinho e seu dono foram atendidos com remédios e prescrições. Perguntará o desavisado: “E o que tem a ver os morotós da orelha de um mulo com o Bem-Estar Social?”. Acontece que o dono é carroceiro, com nove filhos. Se parar, 11 bocas ficarão famintas.
Em seguida, aparece outro caso. A mangueira do vizinho despejou os galhos para o quintal do queixoso. A sombra prejudica as hortaliças que adjutoram a outra banda do seu salário mínimo. Que os frutos pertencem ao dono da propriedade invadida pelos ramos, di-lo o Código Civil, do Dr. Beviláqua. Mas a pergunta do consulente é: “Pode ele podar a fruteira abelhuda, permitindo que o sol cumpra seu papel no desenvolvimento dos coentros e alfaces?”. O secretário deslindou o postulado com um sim.
Quem do pouco se admira, corre o mundo que há de ver. Ainda no mesmo expediente, a mãe, abandonada, com uma penca de filhos, nunca tem comida na panela. Logo cedo, as crianças saem, de duas em duas, pedindo restos. Trazem para casa as sobras do que não comeram ao recebê-los. O caçula ainda não pode farejar cozinhas e lixos. Com menos de dois anos, fica no rancho.
Suzi, também da família, está parida de novo. Filhotes brancos, pretos e amarelos. Genitores, os encontrados na liberdade das ruas, há pouco mais de dois meses e dois dias. O menino, que ainda não sai a esmolar, olhão faminto, vê a gulodice dos recém-nascidos sugando as apetitosas tetas cor-de-rosa. Inocente ou não, desconhece preconceito contra qualquer leite. O que brota de peito de fêmea parida é Deus que manda. Com tal instinto vai disputar o bocado dos cachorrinhos. Suzi, que dorme na esteira com todos do casebre, nem se incomodou com mais um puxando as suas mochilas.
Chamada a mãe para explicar o que parecia crime, segundo a vizinha denunciante, ela defendeu-se: “Já bati no ladrãozinho — Deus me perdoe — e na cachorra. Mas se vou à rua para girar a vida, quando volto estão os cachorrinhos ganindo de fome e o danado do menino arrotando de barriga cheia. Deu até para engordar. Deixei de bater. O pior é que morreram quatro crias de Suzi”. Aí já é caso para o Unicef resolver.
Conquanto se trate de vida de cão.