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URGENTE

Euclides Neto para Wagner Canhedo

São Paulo - SP - 1992

 

Sr. Wagner Canhedo

Presidente da Vasp

 Pça. Lineu Gomes s/n

 04695 São Paulo SP

São Paulo, 7.04.92

Senhor Presidente,

Sem qualquer mágoa, e com a melhor das intenções, vou contar-lhe a nossa aventura para tomar o avião da VASP, em Ilhéus.

Moramos em Ipiaú, cidadezinha socada a duzentos quilômetros do aeroporto, no oco do mato. Saímos cedo, eu e minha velha, para visitar a filha casada, com gente graúda, pois trabalhador metalúrgico, aqui em São Paulo.

Vestíamos a nossa melhor roupa. O vestido, presente da filha. Minha camisa listrada, que ficara apertada para o dito genro, gordo metalúrgico que é, também fora ao Nordeste, por doação, como a linda bota preta que limpei na véspera.

Trazíamos na bagagem (agradecemos não ter pago excesso): carne de sol dois-pelos, quartos de bode, doce de goiaba, de leite e mais queijo de leite de cabra, feito com minhas próprias mãos. E dendê, farinha redonda de mandioca, abóbora-jacaré, pimenta, tomate. Tudo da lavra de casa. Deus seja louvado!

Chegamos duas horas antes do voo-missa, avião e maré se espera ao pé. Dissemos que tínhamos reservado passagens, mandando certidão de casamento, através de Salvador, recebendo a garantia de que tudo estaria certo quando apresentássemos ali um papel escrito com uma porção de números.

Só que o funcionário exigiu a prova de nossa avançada idade, a fim de dar o abatimento para os maiores de 60 (sessenta) anos. E queria fotocópia da carteira de identidade. Não bastava ver original.

Como fotocópia se já tínhamos remetido a certidão de casamento e estávamos em dia de domingo, com tudo fechado? Apresentamos carteira do INSS (tão desacreditadozinho, coitado, que longo se pensou em fraude). Não servia. Carteira do sindicato. Não servia. Um cartão do CIC. Não servia. Carteira de motorista, também não. O atendente só queria a pesteada da identidade, em fotocópia. Gente fina o rapaz, mas entesou.

– Companheiro, como tirar fotocópia hoje, se tudo está fechado? Deixo uma carta, assumindo qualquer responsabilidade, disse eu ao funcionário. Pensei (que Deus me perdoe) em corrupção, mas logo me veio a lembrança que essa prática hoje em dia não é mais para qualquer um – é privilégio dos ministros. Era zelo mesmo, do bom vaspiano.

Até que tive a feliz lembrança, já que o avião se mexia para voar, de sugerir que ficassem com as carteiras de identidade, mandando-as pelo CEDEX para São Paulo (tendo eu deixado com seu funcionário as despesas de correio e fotocópia), onde, por felicidade encontramos no aeroporto a filha desabrochada em sorrisos, os netos pulando aos nossos pescoços e o genro, rosado e robusto, com as graças de Deus.

Já ia me esquecendo: na bagagem vinha também uma coleirinha, passarim cantador, para o neto de cinco anos.

Minha velha foi que gostou. Já bem descambada nos 60, perguntou alegre: – Ele acha que sou mais nova, não é?

Será que não dava para o bom atendente de Ilhéus ter autonomia de simplesmente anotar o número da carteira de identidade em que eu já estou babando os setenta anos, sem precisar tanta burocracia? E a volta, como vai ser, se a carteira não chegar?

Abraços conformados,

Euclides.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ipiaú-BA (1925-2000).