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Um equívoco sobre êxodo rural

Euclides Neto

A TARDE - Salvador - BA - 1987

 

Aos menos avisados o êxodo rural preocupa somente por três razões: aumenta os problemas da cidade, inclusive a falta de alimentos; diminui a matéria-prima destinada às indústrias; e os produtos exigidos para a exportação.

Pouca gente pensa no lavrador em si. Ele passa a ser um meio, mero objeto para servir. Se o êxodo não criasse os dramas que aí estão, pouco importava a sua sorte. Se o País não precisasse pagar os débitos, não haveria preocupação com o seu destino.

Aí mora um equívoco.

Lavrador é gente. Precisa ser assistido porque é um cidadão. Se o seu trabalho contribuirá para resolver o débito externo que fizeram ou se vai alimentar a cidade, isso interessa primordialmente na medida em que a produção será comercializada.

Precisa-se reconhecer a importância do homem do campo, que pode viver sem a cidade. Esta é que não pode sobreviver sem ele. Cerquem uma capital, deixando-a 15 dias sem o produto da terra! Pena que não se possa levar muita gente para conhecer certas famílias do sertão, infelizmente, hoje, em extinção pela grilagem e os juros bancários. Lá ainda existem lavradores com o taco de terra, média de 50 hectares, que fazem a farinha, o polvilho, a rapadura, guardam o milho, o feijão, arroz, gergelim de uma safra para outra, dando-se ao luxo de ter um banco de sementes, particular, prevenindo-se para o plantio vindouro; matam a criação e têm a carne de sol que dura semanas; abatem o porco e guardam a banha, recolhem ovos em balaios; guardam abóboras, conservam requeijões de casca grossa; plantam, colhem fiam, fiam e tecem o algodão nas roças e teares feitos com tábuas rústicas e nervuras de palmeiras; costuram as roupas: das finas para as mulheres ao pano encorpado das cobertas. Alumiam-se com óleo de mamona plantada também ali. Fazem a melhor cachaça do mundo para as suas festas; o sal, tira dos barreiros descobertos pelos animais silvestres. E vivem robustos, felizes. Muitos deles já foram comidos pela grilagem e pelos programas estúpidos do governo.

Contudo, muitos ainda resistem.

Onde a cidade tem condições de sobreviver, assim? A caderneta de poupança desses pais de família é a comida farta, depositada no cofre da sua despensa.

Portanto, vamos respeitar o lavrador, enxergá-lo como um brasileiro digno, sem o sentimento de falsa caridade ou paternalismo, que ele detesta. Demos a ele o valor que os japoneses atribuem aos seus agricultores, tendo-os na conta de uma profissão sagrada, vendo-os como ídolos. Lavrador não é bicho que pare lucros ou máquina emissora de divisas, valendo na medida em que resolve os problemas que os burocratas criaram. Nós é que agudizamos as suas dificuldades, transformando-os em bestas da produção desvirtuada, contribuindo para a sua extinção, dando prioridade às grandes empresas, alimentando a gulodice do sistema mercantilista, quando sabemos que os pequenos e médios são os que mais produzem. Assim como destruímos os índios, estamos liquidando os modestos plantadores, na medida em que permitimos a grilagem, negando-lhes a assistência conveniente e respeitosa. Não podemos cobrar juros que só a agiotagem justifica. Nem, sequer, a correção monetária subsidiada para a lavoura, quando sabemos que produtor rural não repassa custos como o fazem os comerciantes e industriais, que, mesmo assim, quebram de vez em quando.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ipiaú-BA (1925-2000).