Um Caso de Reforma Agrária
Euclides Neto
Jornal dos Trabalhadores Rurais - Sem Terra - Salvador - BA - 1994
O que vai aqui escrito é uma homenagem aos 10 anos do Movimento Sem Terra, transcorridos agora. Não direi onde nem de quem eram as terras da Fazenda Sapucaieira, para não gerar qualquer suscetibilidade. Basta o fato: 37 lavradores sem chão, com suas famílias ocuparam uma área. Todos estavam sem morada, desempregados, famintos.
Quem se dizia dono tomara um generoso empréstimo em banco do governo para instalar no local uma serraria, que não se concluiu. O crédito fora desviado para outras atividades, inclusive eleitorais. Depois veio a falência do empreendimento e o dinheiro desperdiçado.
Após a ocupação, o “dono” requereu ação possessória. O prestimoso magistrado (esquecendo o Art. 5o da Lei de Introdução do Código Civil: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”) deu a liminar apoiado na parede, mandando expulsar os trabalhadores. Requisitada a força policial, ela parte célere e heroica à violência. Aí vale tudo: os casebres improvisados com piaçava e sapé são queimados. Destroem a pouca comida encontrada – feijão, farinha, café e açúcar. Quebram-se panelas e potes. Mulheres e crianças gritam apavoradas, escondem-se na mata, fugindo dos fuzis e das botas. Tiros para o ar, lembrando que podiam ser disparados na altura das costelas das indefesas criaturas.
Tudo porque famílias de lavradores, em estado de necessidade, queriam plantar nas terras públicas.
Quem se dizia dono? Um deputado da região, que antes era oficial do Registro de Imóveis, com força política e funcional para transcrever terras em nome de quem entendesse. Mandava na Justiça, na Polícia, na prefeitura, montado nos 80% dos votos municipais. Só não se lembrou de plantar duas manivas ou criar uma galinha naquelas terras.
Passados tempos, novas ocupações e expulsões. O deputado embrutece, mas teme o desgaste eleitoral. Acomoda-se.
Agora, seis anos depois, voltamos à Fazenda Sapucaieira. Abriga 37 famílias. Produzem tudo. Plantaram extensa roça de coco. Criam gado leiteiro. Exploram comunitariamente menos uma área de 5 ha para cada assentado, que é privativa. Já moram em casas de tijolo e telha. A instalação elétrica só falta ligar. Na praça, um improvisado campo de futebol, onde as crianças gritam alegrias.
Recebem-nos rindo, relembrando as aventuras passadas, os acampamentos iniciais, as prisões, quando saímos de Salvador para libertá-los. A satisfação maior é mostrar uma ninhada de bacorinhos na pocilga. E a casa de farinha.
O deputado perdeu as eleições. Voltou a seu cartório. Onde ninguém tinha trabalho, existem, hoje, comida, fartura, inclusive para a mesa dos juízes, soldados, deputados, prefeitos, vereadores que tanto combateram a singela luta daqueles duzentos brasileiros. Com um detalhe: junto, na divisa, há uma reserva florestal da Mata Atlântica, respeitada como se fosse um sacrário.