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Terras improdutivas

Euclides Neto

A TARDE - Salvador - BA - 1988

 

Euclides Neto

                Existem vários tipos de fazendeiros: os que estão cumprindo a função social, aproveitando adequadamente a terra, preservando o meio ambiente, cumprindo as obrigações trabalhistas, enfim, favorecendo o bem-estar dos proprietários e empregados;

                os adquirentes do que chamam de gleba, gostam de chamar o macaqueiro de camponês, compram caminhoneta cabina dupla e tudo que aparece na propaganda do consumismo agrícola. Arremedam os manuais de como criar e plantar. Frequentam a terra nos fins de semana cheios dos supérfluos que jamais utilizam, até descobrirem que investiram indevidamente. A festa da rede na varanda, o cavalo de sela, o ar puro das campinas, o canto dos passarinhos e o leite cru no curral saíram mais caros que os ditos fins de semana nos hotéis constelados. Tiveram duas alegrias: uma no dia da compra e outra maior no dia da venda. São os ingênuos;

                os descendentes de antigos proprietários rurais da boa cepa, que hoje são advogados, médicos, comerciantes, industriais, altos funcionários, mas largaram a terra. Ela se desvalorizou. Os agregados, vendo aquilo desprezado, tomaram conta com ânimo de donos. Após eras, nasceu a posse usucapindo na boca da enxada. Apareceram os créditos açucarados. Os sucessores mexeram no baú e toparam as certidões roídas pelas traças, ratos e baratas. Os netos, bis e tatas buscaram, então, o tempo de Proust, lambuzados nas saudades interesseiras dos ossos avoengos. Emendou-se a cadeia sucessória, soldando os elos desaparecidos. Esqueceram, evidente, os hábitos do eito e da sela. São os mãos-finas do bisturi, da caneta, da tribuna, dos balcões;

                outros se aproveitaram dos encontrados nos baús, astuciaram os inventários dos mil-réis, transformando-os em hectares, cuja elasticidade dependeu do prestígio político e das armas. Inventaram terras que jamais existiram. São os ladinos;

                muitos compraram o domínio legítimo com objeto, preço, consenso, forma, ocupação justa, cordeirinha de mansa, encastoada na boa-fé;

                a grande maioria trabalhou o chão, suando-o, usando o crédito bancário, criteriosamente, até que foi apanhado como um porco pelo gancho das correções monetárias;

                os que ouviram a voz dos seus antigos, como Altino Brito das Contendas do Sincorá, enfincaram cada vez mais as raízes no chão. Aos 94 anos pegava na foice ao acordar dos dias ou a meia-lua da sela em busca da rês montada no mato;

                sabemos que não existe preço para os apaixonados da sua fazenda. Mesmo a que dá pouca renda. Se venderem, morrem de tédio e paixão. Dizem que mais vale um gosto que seis vinténs; prazer por prazer, é melhor ter uma roça que dá prejuízo do que uma escuna que também dá.

                Para quem visa somente ao lucro, é melhor criar dinheiro no banco que ter vaca no pasto. Não precisa de roçagem, destoca, aceiros, cercas, aguadas, adubos, vaqueiros. Não há risco de doenças ou de vender bezerro a quem não paga. E vantagem das vantagens: não é obrigado a penhorar um pedaço de carne perto do coração como fez Shylock, em o “Mercador de Veneza”. Daí muita gente — que não tem o umbigo enterrado na porteira do curral — estar vendendo terras, mesmo produtivas, e botando a vaca a pastar nos cofres bancários. São os que sabem ganhar dinheiro franco, fácil e farto.

                Portanto, é negócio da China vender as áreas improdutivas ao Ministério da Reforma Agrária, receber os títulos da dívida agrária que desovam correções e juros repicados. Se preferir trabalhar, comercialize os papéis (não falta quem os queira), aplique-os naquilo que você conhece e gosta. Não dará mais lucro que o over, porém gratificará espiritualmente.

                As terras sem produção atraem os famintos e desesperados, que veem a padaria e o trigo abandonados por quem não os usa, provocando o estado de necessidade dos carentes de farinha e telha. Não precisa ser Dom José Rodrigues para entender isto. Caso não queira ter o gesto de solidariedade (o que não é o seu caso, prezado leitor), lembre-se da inflamação, que sugere inchaço e infecção social, quando os mais aquinhoados andam aflitos com o sequestro dos filhos, enxergando fantasmas paridos das sombras, moram atrás das grades das mansões, protegidos pela canzarrada.

                Sejamos, ao menos, comerciantes na procura do lucro. Jamais intransigentes, rancorosos, teimosos, lutando contra o tempo, depositários de um sentimento sem explicação, preferindo ficar com a terra maninha que não tem mais crédito subsidiado, nem valorização compensadora, nem renda, nem a proteção da Lei Madrinha e Mãe promulgada no dia 5 deste.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).