Tempos doirados do cacau
Euclides Neto
A TARDE - Salvador - BA - 1995
Meu compadre Ângelo São Paulo, quando estudante, morava na Graça, em um palacete de seu respeitável pai, professor Fernando São Paulo. Depois foi advogar em Brasília. Naquela época, bairro elegante, já se vê. Chegaram os pebas. Até eu passei tempos ali, durante o curso dos meus cinco filhos, até que viraram doutores. Creio que fui o começo e causa da decadência do aristocrático logradouro. É que a cabroeirada lá de casa, no costume da roça, carregou os seus bichinhos de estimação: passarinho, cachorros, pombos, coelhos, cágados, uma veadinha que às vezes escapulia à rua, sonhando com a liberdade perdida. Até um bezerro rejeitado levaram. Imagine-se a arca de Noé. Até hoje peço perdão aos tolerantes vizinhos.
Pelo visto, antes de nós, ali só moravam sobrenomes e nomes empolados da sociedade baiana, inclusive os lendários fazendeiros de cacau
Ângelo, somando ao seu o prestígio do pai, frequentava as melhores rodas sociais. Iate, seu clube preferido, Bahiano de Tênis, que acolhia senadores, deputados, grandes comerciantes, industriais, onde também não faltavam os poderosos cacauicultores, que, por mais que os outros não quisessem, dominavam as conversas. Falavam das suas fazendas, mostrando fotografias das casas-sede, narrando viagens ao exterior e outras aventuras menos pudicas. A fama do dinheiro era tamanha que alguns podiam até cair um pouco no ridículo pelas bravatas. Mas eram invejados.
Lamuriou-se Ângelo certa feita que chegou a sentir-se excluído quando se falava de safras, temporões, cortes, carregos, vendas de milhões. Os que não tinham cacau amofinavam-se, silenciosos. O cifrão cala os que não o têm.
No Tabaris, os donos dos doirados frutos reinavam. Rapaz solteiro, vistoso, o futuro jurista também os acompanhava na antiga casa da roleta, do bacará e das mulheres bonitas, importadas até do Rio de Janeiro e Paris. Beldades que eram só atenções e carinho para os homens do dinheiro. E deboche.
Ângelo, como dito, gozava de quase nobreza. Era o único estudante que, vez por outra, frequentava a Escola de Direito em um luzido carrão preto, pertencente ao pai ilustre. Mas, filho de professor da Escola de Medicina, morava bem, tinha posição, destaque, prestígio, menos cacau, sinônimo de grana naquelas famosas eras.
Um dia, por caçoada, meu compadre pediu-me duas mudas de cacau. Estranhei a solicitação, perguntando por que duas e não uma, já que o seu quintal estava repleto com jabuticabeiras, sapotizeiros, mangueiras. “Deixe comigo”, respondeu-me. “Só a partir de dois pés eu posso falar que meus cacaueiros estão carregados, a safra será a maior de todos os tempos, ainda não vendi nem uma partida, aguardo cotação. Vou comprar uma casa em Copacabana. Como não minto, entrarei na conversa, discutindo preço em dólar, exportação, feito fazendeiro graúdo ganhando prestígio e as meninas alegres do Tabaris”.