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Suspiros de uma enxada

Euclides Neto

Artigo em “A enxada” - 1996

Era uma vez...

Levanto-me com os rubis do sol encastoados nos confins das eras, e a devoção humilde dos tempos bíblicos. É chegada a hora de abrir a cova das sementes que morrem para nascer. Se o bisturi lanceta a carne e evita o fim; se a caneta escreve os poemas, os romances e as partituras; se o computador é o cérebro do homem, tudo não existiria se os feijoeiros não florissem. Sou a lâmina que rasga o músculo da terra e cria a vida.

Sofro primeiro o ferrão envenenado da terrível jararacuçu, quando o roceiro o puxa aos pés para sacudir a terra e separar a erva...

Mas, envelheço e viro um desprezível cacumbu. Os ouros e platinas antigos são cobiçados pelos museus, enquanto fico largada à toa na roça — meu último repouso. O madeiro que me completa apodrece. Meu trabalho é eterno.

Já vergada e cega, passam-me a lima ríspida ou me batem na face com a pedra rude. Sou o espelho da lua e do sol quando nascem.

Os eruditos me desprezam. Sempre os perdoei. Ainda mato-lhes a fome. Lavro todos os livros do mundo e não me alimento dos seus frutos.

Estou nos banquetes. Enfeito as jarras de cristal com as pétalas matizadas. Planto o linho das toalhas de richelieu que realçam os faisões nas baixelas de prata. Em oferenda, levo as frutas da sobremesa. Plantei as jaqueiras centenárias. Até a champanha e licores que inebriam. Passam todos pelo beijo dos meus lábios. Levo alegria, gargalhadas, inspiração aos músicos e poetas.

Não me queixo do destino. Em verdade, em verdade vos digo: o pão do pobre e o da hóstia consagrada (que se transforma no corpo de Cristo) e a uva do vinho do seu sangue lavam minhas lágrimas e suor.

Os poetas nunca me lavraram um canto. Rimam os passarinhos, as luas crescentes, as saudades, as flores, as dores, os albores e os amores. Mas sou símbolo do lavrador, que lavra a dor. Sou a palavra da terra.

Não chego a ser coroa cravejada de brilhantes. Nem aliança nupcial. Nem adorno das rainhas. Nem medalha no peito dos heróis. Nem sobre o coração do Nobel da Paz. Nem estatueta do Oscar. Nem pouso na vaidade dos comendadores. Em verdade vos digo: não vou além de um caco de ferro metido num pedaço de pau.

Não deixo o aroma de sândalo e mirra dos Reis Magos aos pés do Menino. Em verdade vos digo: alimentei a família de José e Maria com o trigo que plantei.

Meu perfume é o suor dos negros nos eitos.

Não planto as metralhadoras nas trincheiras. Planto a rosa, o jasmineiro, o manacá, a flor do feijoeiro. Não planto a fome. Carpi-la é o meu ofício. Não toco a música dos violinos. Acompanho os acordes dos canarinhos-terra das amanhecenças. Não tenho os candelabros de ouro que iluminam os anfiteatros de veludo. O sol e a lua é que me enfeitam os salões verdes dos milharais, e riscam partituras no chão.

Não vou esquiar Alpes gelados nos pés de princesas. Prefiro as mãos de rocha dos descalços. Não sirvo de brinquedo para os meninos dos palácios. Mas até as criancinhas que mal começam a andar na roça pegam a enxadinha gasta da avó e saímos traquinando. E o avô ralha, comovido: menininha é cedo para pra labuta, teu tempo chega.

A debutante não me leva aos bailes da corte. Mas a menina da fazenda do Povo, antes da primeira lua, me ama tanto que a sua mamãe me esconde para não fugirmos à horta sob a pureza das noites azuladas.

Quando virar uma lágrima de aço enferrujado, num canto da roça ou no oitão da casa de taipa, não quero que me sejam gratos — ó gente de pouca fé. Rogo que cantem uma oração para que eu possa adormecer em paz e voltar ao pó da madre, que tanto amei.

Alimento todos os homens: santos, operários, reis, generais, heróis, eruditos, criminosos no fundo das prisões, prostitutas. E nunca pergunto a quem vou alimentar.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).