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Só a mordomia é do primeiro mundo

Euclides Neto

A TARDE - Salvador - BA - 1995

 

Esplêndida a visita do presidente ao Nordeste. Deveria, contudo, como na campanha, vir montado no seu pangaré, invés de cavalgando uma constelação hoteleira.

A mortalidade infantil, o índice de tuberculose, o analfabetismo, o embola da fome, enfim, a miséria de Recife, é comparável ao que há de pior no Planeta. Absoluta desgraça social. Se fosse classificar, não se poderia chamar de Mundo, Segundo ou Terceiro, mas de Primeiro Inferno.

Recife é o imenso estuário da pobreza nordestina. Até pela sua situação geográfica. De lá vem a crônica dos comedores de caranguejo, que, por sua vez, se alimentam dos excrementos de quem os come.

Em Biafra, pelo menos, a carência não contrasta com os palacetes, os clubes luxuosos, as piscinas marmorizadas, o fausto dos usineiros, dos automóveis importados dos poucos ricos. Aqui, o faminto assiste ao desperdício dos banquetes que, sequer, pode aproveitar, porque são enxotados como cães de rua. Lá têm terra para fazer o casebre, aqui precisam levar a pecha de invasores e sofrem os rigores da justiça.

 Pois bem. É no Recife que a corte de Brasília se instala. Hospeda-se em hotel do qual os marajás indianos teriam inveja. Ocupam 46 suítes. Hão de dizer: isso não é nada para o Orçamento do Gabinete Presidencial. São os insensíveis que pensam assim. Deveriam saber que economia se faz de tostão e não de milhão. Qual é a moral para combater o contraditório consumismo popular de quem compra como suor uma geladeira, um som, um liquidificador, sonhados às vezes desde a infância?

É uma afronta aos esfarrapados, que só não se levantam porque a miséria já destruiu até a ira dos injustiçados.

 Parecia o traslado de Dom João VI para o Brasil, com arcas de roupas, pedrarias e ostentação. Sem os tambores dos franceses nos calcanhares.

 Ao menos, por pudor, com símbolo de probidade, deveriam escolher uma hospedagem ao nível das suas casas particulares que já são de milionários. Mas querem a ostentação, o brinquedo como dinheiro público, a companhia quem sabe, até das odaliscas, como se estivessem numa festa oriental.

 O presidente devia dar o exemplo de sobriedade. Ainda queremos acreditar que foi influenciado inconscientemente pela blandícia dos aduladores que conhecem o ponto fraco dos políticos. Tenta-os com as delícias irresistíveis do conforto. Sobretudo quando eles já experimentaram os prazeres do mundo civilizado. Ainda bem que, certamente, não beberam vinho francês e uísque importado. Preferiram suco de caju de Olinda e a caninha de colar de pérolas no gargalo da garrafa. Deus tá vendo!

 Conhecíamos a corrupção do dinheiro e a do comportamento. Agora estamos ante a pior de todas, porque envolve as outras, a corrupção da mordomia.

 Já estamos no Primeiro Mundo. Só que ainda não é o do desenvolvimento, mas o da Mordomia.

 

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).