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Pesadelo

Euclides Neto

A Tarde - Salvador-BA - 1994

A sordidez é tão grande que não dá para crer. Conto para desabafar e defender mais uma vez os lavradores, acusados sempre de muitos desatinos. A mentira correu na região cacaueira. Aliás, um amigo por quem boto as mãos e os pés no fogo, disse-me que fora consultado se queria participar da ignomínia.

Como o que ouvi é impossível de acontecer, acredito que ele não tenha entendido bem a proposta que lhe fizeram.

Nem é possível que brasileiro chegue a tanto. Nem o capitalismo sem bofes, capaz de tudo, tomaria desgraça tamanha, prejudicando pequenos produtores da nossa mãe África.

A coisa é tão grave que tenho dificuldade em narrar. Digo-o para tranquilizar a todos da impossibilidade de o fato acontecer. Sonho ruim se deve contar no dia seguinte, para que não aconteça. Pois bem, tive um pesadelo: um grupo de produtores de cacau de altas botas — antigamente é que usávamos coturnos — se reuniu, debaixo de sete segredos e atrás de sete chaves, para levantar recursos destinados a contratar aviões que disseminariam a terrível vassoura-de-bruxa nas roças estrangeiras.

Sabemos que a usura pelo lucro a qualquer preço é fruto venenoso do momento em que vivemos. Mas tudo tem um limite.

Esse absurdo de levar uma doença fatal como meio de destruir os concorrentes, não entra na cabeça de ninguém. Só pode ser má-fé para nos colocar em situação indesejável lá fora. Seria pior que matar crianças a tiro, porque muitas delas morreriam de fome pela destruição das suas plantações, atingidas pela guerra biológica. Só monstros e insanos seriam capazes da crueldade.

Soube ainda, para alívio de todos nós, que agrônomos presentes, por dever ético e cumprindo juramento no ato da colação de grau, foram contra. Fazendeiros também. Já conforta.

Até parece aquela história que ouvíamos na infância: os tuberculosos, levados pela compulsão da doença, bebiam nos copos dos sadios para transmitir o mal, incurável naquela época.

Só faltavam acusar os cacauicultores desse hediondo crime.

A situação financeira é muito grave na região, chegando a ser dramática, mas nunca alguém da roça pensaria em tamanha indignidade. Se por acaso as supostas vítimas tiverem conhecimento do maldoso boato, fiquem tranquilas. Agricultores não cometem delitos contra a humanidade. Não somente porque o feitiço possa cair sobre o feiticeiro, mas por uma questão ética e atávica bondade.

Tudo não passou de um pesadelo. Aliás, com certeza, é boato maligno.

 

 

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).