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Palestra na UESC: Educação e Política

Euclides Neto

1998

Educação e Política (23/10/1998)

A Educação é o reflexo do regime político de cada povo. Daí o seu conceito variar de uma ideologia para outra: fascismo, comunismo, capitalismo e a chamada democracia, à qual todos dizem pertencer.

Não mergulharei nessas profundidades dos mestres. Como leigo, prestando um singelo depoimento, ficarei nas águas rasas da realidade que tenho vivido que também é política, na área da Reforma Agrária.

Onde sempre lutei por uma educação que preparasse o aluno para o trabalho – o mais rápido possível, admitindo que a prioridade é ter comida e abrigo, o que, sem o emprego, não é possível. Ensinar o saber pelo saber é como arte pela arte, a velha torre de marfim, muito bela e formosa, mas injusta, porque só alcança o per capita dos afortunados, enquanto a miséria domina a maioria ignara. Ainda estamos no estágio de priorizar as técnicas agrícolas e industriais, sem perder tempo. Plantar comida e apertar parafusos, antes de estudar línguas mortas e a crítica da razão pura.

O que come mora e tem emprego, necessidades básicas do homem, não sabe o que é a falta de qualquer habilitação e, consequentemente, a impossibilidade de ter acesso à sobrevivência.

Isso não impede de reconhecer que a Universidade é o cérebro que pensa. Não se conhece Civilização sem ela. Da qual depende o desempenho dos políticos, que dirigem o Estado. A ela se deve recorrer nos momentos das grandes dificuldades sociais. Da doença vassoura-de-bruxa, que hoje dizima a economia cacaueira, aos dramas financeiros por que passa o Brasil. A lógica é simples: nas universidades estão os mestres que ensinaram os agrônomos e os dirigentes do Banco Central, os melhores laboratórios e as especializadas bibliotecas, fontes do saber.

Mas não defendo a Universidade da erudição pela erudição ou meio de fornecer diploma como antigamente se vendia título de nobreza.

Praticamos a educação mais objetiva possível nos assentamentos de Reforma Agrária, servindo para todo o interior, que alguns imaginam ser o que está fora da Capital, quando interior é o que fica depois das cidades menores. Nestas existem telefone, televisão, água encanada, luz elétrica, fax, até internet. Interior é o grotão, sem nenhum desses confortos. Muitos desconhecem as dificuldades de levar, em certos casos, até a água de beber e a semente. Têm na cabeça as Escolas Parque de Anísio Teixeira. Imaginam encontrar professores preparados, quando, sequer, existem os com o curso primário completo, o que ocorre mais ainda porque o êxodo rural atrai, como um imã, não somente trabalhadores analfabetos, como os que têm qualquer grau de instrução. O recurso é a professora leiga, que sabe muito pouco, mas ensina a quem nada sabe. Se hoje há falta de mestres para Universidades, sobretudo devido aos miúdos salários, imagine-se alguém submeter-se a morar no interior de um município, numa casa de taipa, coberta de palha, carente de transporte certo. Sem poder esperar a construção do prédio com cimento, tijolo e telha. Aproveita-se a palha, capim, sapé, ou a terrível lona plástica e cobre-se o barracão. Carteiras, mesa da professora também são luxo, quando se tem pressa para iniciar a alfabetização. Improvisa-se tudo e se inicia o aprendizado do Ba-Bá. O ideal todo mundo sabe, e também o desejamos: as escolas sonhadas por Darcy Ribeiro, implantadas no Rio de Janeiro e em alguns centros maiores.

Conseguindo professoras diplomadas, integradas com a comunidade, deveriam elas ausentar-se somente nas férias, ou por razões imperiosas, para não criar a impressão de que na roça se deve passar o menos tempo possível.

Conheci uma professora ideal, Iracy, para as áreas de Reforma Agrária. Era diplomada, sim, mas ao deixar a sala de aula pegava na enxada, enfiava o chapelão de palha e ia para o meio dos trabalhadores: plantar, colher, debulhar, cevar mandioca, ainda ensinando. Pois bem, depois soube que ela tinha sido reprovada em concurso da prefeitura, porque escrevera chuchu com X. Os seus alunos ficaram inconformados e os adultos, que estudavam à noite, revoltados. Felizmente a brava mestra continuou na Fazenda do Povo com uma simples lavradora. Fui obrigado a dizer aos examinadores: prefiro uma professora da roça que não sabe escrever chuchu, mas que saiba plantar e ensinar a plantar “xuxu”.

Seus alunos trabalhavam em hortaliças e determinavam o horário de frequentar a aula, após cumprida a obrigação do trabalho. Todos eram mestres na arte de semear, colher, regar e vender. Faziam até pesquisa de mercado. Sabiam que para São João deveriam plantar milho, e quiabo na Quaresma. Uma menina de 8 anos lavrava sua leiras, as quadras da semeadura e vendia a colheita, sempre por melhor preço. Motivo: madrugava ao chegar à feira. Como também sempre foi a primeira da classe.

Os ilustrados podem condenar tudo isso, porque não conhecem a realidade. Cheguei a construir uma Escola Normal Agrícola para diplomar somente as professoras destinadas à zona rural. Teriam que saber conduzir um parto, aplicar soro antiofídico, prestar primeiros socorros médicos, ministrar convenientemente remédios caseiros e cultivar perto da sala de aula as plantas medicinais. Até informações de Direito Trabalhista que transmitiriam aos meninos. Estimulariam a permanência na terra, valorizando-a, pregando as suas vantagens, convidando técnicos para ministrar palestras e ela mesma capacitada para ensinar rudimentos de agronomia e veterinária. Jamais fomentando o êxodo rural. Criamos um Ginásio Agrícola, este, sim, funcionou plenamente.

Ensinava tudo em função do que a zona explorava: cacau, gado de leite, cana, mandioca, horticultura, suinocultura, avicultura, carpintaria etc. E não bastava o aluno aprender, era preciso aprender a fazer, e não bastava aprender a fazer, era preciso aprender a fazer dando resultados econômico e social.

Na Fazenda do Povo, certa vez, apareceu um grupo de professores da Universidade de Recife e me censurou porque vira o nome da escola escrito errado, no quadro-negro: – Como é que o Senhor permite uma mulher ignorante ensinando. Não sabiam eles das dificuldades de encontrar quem fosse morar na roça. Ouviram, então: – Se os Senhores conseguirem que Anísio Teixeira venha ministrar aulas, o contrataremos agora.

De escola assim, foi que saíram também alguns que se diplomaram (uma pena! Deveriam ter continuado na terra!) na Escola Superior. Um não se perdeu de todo. Conquanto labute nas plantações o dia inteiro, à noite desperdiça o tempo ajudando a esposa, também advogada, a lavrar arrazoados. Aos sábados, sem deixar o bom costume de menino, o Dr. Wilson está na feira, com suas verduras, debulhando feijão verde, entre o atendimento a um freguês e outro. Traja mescla de roceiro, camisa de roceiro, chapéu de palha. Sua voz de mercador é mais eloquente que se estivesse na tribuna do fórum de beca e código à mão. O fato de começar a aprender com professora leiga, no meio rural, não significa que depois não possa chegar a Ministro do Exterior. Com uma vantagem: aprende a ciência do lavrador, ao lado da legislação internacional comparada. Pessoalmente, não me arrependo: comecei a cartilha desse modo, com uma professorinha leiga e linda, moreninha como a de Macedo. Sabia pouco, bem verdade, mas, se aprendi a ler, o que nem eu tenho certeza, foi com ela. E viajava eu mais de uma légua para chegar à aula, num espaço acanhadinho, espremido entre quatro paredes de uma sala de jantar, aproveitando a mesinha onde a mestra fazia as suas refeições com os filhos e o marido, também lavrador. Aprendi, lá na infância, no precioso livrinho “O Bom Homem Ricardo”, o que sei de ética. Aristóteles só fez me lapidar, tirando a casca grossa, se, volto a afirmar, lapidado sou.

Evidente que à medida que o tempo foi passando, construíram-se prédios escolares, não muito grandes para que os meninos não tivessem que viajar muito, já que moravam nas glebas distantes umas das outras. Conseguimos algumas professoras diplomadas. Poucas, que exigiam o transporte diário pela manhã ao assentamento e o retorno à cidade. Raras aceitavam morar nas fazendas.

Por outro lado, a implantação de um assentamento já é uma eficiente escola informal. Nela se começa a usar semente melhorada, que produz mais. Vacinam-se os animais, diversificam-se as culturas, usam-se métodos mais modernos na exploração da terra, incluindo-se a aração, gradação, uso de adubos etc. Transferem aos vizinhos conhecimentos de como organizar associações e cooperativas. Esse tipo de extensão rural, ao vivo, mostrando logo os resultados positivos, funciona melhor que os órgãos que a fazem nos moldes tradicionais. É que o aprendizado nesses casos é mostrado ao vivo, e não através dos compêndios e lousas, ou sob forma de discurso. A melhor sala de aula e o mais eficiente laboratório são a própria roça – o ensinamento entra pelos olhos.

Tais escolas ensinam também o exercício da cidadania. O pior analfabeto é o que não sabe votar, deixando-se conduzir, trocando o voto pela cesta básica, coagido pelo estômago. Vê-se, pois, que uma área de Reforma Agrária é uma escola política, onde se aprende a reclamar direitos junto aos órgãos do governo: crédito, saúde, a própria educação, respeito pela condição de lavrador.

E exigir novas áreas para os companheiros.

O que vai contado aqui é mais uma provocação, como toda a busca do conhecimento humano. Acredito na Universidade de Educação pelo que dela sei. Sempre espero que ela estude um meio de levar ao campo eficiência no ensino. Tudo isso vale como um modesto depoimento, colhido numa realidade que não chega às cátedras.

Ensina-se e aprende-se como se pode, mas poucos têm a coragem de fazer o possível, até que as condições permitam realizar aquilo que deveria ter sido feito desde o início. A necessidade não espera que se tenha uma Universidade modelo para iniciar o seu funcionamento. Nem um hospital. Muito menos uma escola da roça. Nem nada. Governar bem é priorizar o mais rápido possível as maiores carências. Até as atropelando.

A política da educação, pois, não pode desprezar métodos tão condenados pelos teóricos. Se fôssemos esperar, nada se teria realizado. Não fosse assim, muitos de nós, cá de fora, continuaríamos analfabetos, mais do que somos.

Quem não tem cachorro, caça com gato.

 

 

 

 

 

 

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ipiaú-BA (1925-2000).