Os desabrigados das barragens
Euclides Neto
A Tarde - Salvador-BA - 1995
Encontram as famílias nas terras fertilíssimas dos aluviões, onde os moradores plantam de um tudo. Os quintais folha com folha como se fossem um pomar coletivo: goiaba, manga, sapoti, pinha, seriguela, jaca-de-pobre, mamão, banana, groselha, uva, carambola, pitanga, figo. Fazem doces admiráveis, dando fartura em casa e nas feiras. Criam-se as vaquinhas de estimação, cabras, jegues, porcos, galinhas, saqués, patos, perus. A água, no terreiro. Farta e limpa nas irrigações tradicionais, que produzem milho, feijão, verduras, tangendo as secas. Ainda há a igreja centenária, guardando as lembranças e saudades dos antigos.
Pois bem. Chega o governo e começa a levantar as barragens. Pensa só na energia para as cidades e indústrias.
A ameaça para expulsar os moradores é simples: basta espalhar que as águas vão afogar bichos, plantas e moradas. Todo aquele ordenamento comunitário desaparecerá. Os desabrigados recebem casas bonitinhas, no alto das terras arenosas e sáfaras. Ganham um salário de manutenção e a velha promessa de irrigação, que não acontece. E, mesmo que ela venha, com as várias elevações, não terão recursos para pagar a energia cara e os adubos, que antes não precisavam.
O pior é que, para enganar os ingênuos, constroem algumas piscigranjas. Lindas, dentro da mais sofisticada técnica, copiando Israel. Ali colocam róseos porcos landraces, marrecos importados e peixes exóticos. Trazem, também de fora, técnicos de muitos cursos e pouca experiência. A obra é mais para exibir, mostrar modernidade. Três pés: porco, pato e peixe, afora o nato homem. Um comendo o cocô do outro na reciclagem biológica. Beleza de sonho! O processamento final da tripa do suíno vai para o papo do pato e, dos terminais dos dois, ao peixe. Só que desconhecem um brejeiro detalhe: os alevinos de piranha, que vêm na água bombeada, crescem, comem os peixes lordes pelo rabo. Botam ralos na saída dos canos, passam os ovos. Atarraxam filtros. Tudo resolvido. Só que as aves aquáticas trazem os ovos nos pés, infestando os viveiros. Os 40°C se vingam dos porcos arianos, e haja balde e braço para aliviar os coitados do calor. Não se fale na ração peletizada dos bichos, melhor que a comida do suposto beneficiado. E os patinhos amarelinhos são importados! Moral da fábula: o sol, as piranhas e os elaboradores de projeto tão lunático devoram tudo. Resta o bode pai-do-terreiro rindo dos doutores.
O sertão, amigo e pródigo, vinga-se dos corruptos e inimigos dos ex-barranqueiros. Vi tudo isso e protestei. Pregava no deserto, para não dizer na caatinga.
Agora a população de Rodelas, entre outras, estiola-se no ócio de receber um salário amargo, dando-se à cachaça, ao jogo e ao crime e, mais grave, não tem onde trabalhar.
Seria bom que os gênios responsáveis por tanta crueldade fossem condenados a viver em tais cidades fantasmas, curtindo o couro na insolação, vendo as piscigranjas abandonadas. Imagine-se com a privatização!