Olho do dono é que engorda o boi
Euclides Neto
A Tarde - Salvador-BA - 1995
O avô fez aquilo tudo. Topou a terra bruta, palmilhada pelos índios e jagunços fugidos. Chegara mesmo a pegar uma cabocla na mata e na cama de varas. Há quase 70 anos.
Trouxe gado das caatingas e um garroto melhorador. Antes de passarinho se coçar, já estava no curral, arreando vacas. Quando passou a ter vaqueiros, a labuta continuou a mesma. Depois, o café com leite gordo, requeijão quente, manteiga de garrafa e farófia de tripa de porco.
O cavalo já esperando no mourão. Agora, correr manga, olhar serviços, conferir cercas e reses que há dias não encontrava. Suas calças rasgadas pelos espinhos esporão-de-galo, calumbi e pontas de toco dos roçados.
Voltava com o sol ajoelhando por detrás das serras. Tomava banho no Gongogi, rio limpo, fresco, sentindo os piaus alisando suas canelas.
Com as próprias mãos ferrava o gado, macetava os garrotes. Era o melhor apartador de porteira, montado no cavalo de fé. Sempre conferia o rebanho. Faltasse um bezerro, tinham que dar contas. Ele mesmo saía a procurar também. Olhava uma novilha e dizia bíblico: “é filha de Nambu, que é filha de Corujinha, que é filha de Mansinha”. À cidade, distante 10 léguas, só ia vender boiadas. Chegou a 5.380 reses de mamando a caducando, nos oito mil hectares.
O neto dava-lhe muito gosto, sobretudo porque se formara em Administrador de Empresa. Como presente, o doutor recebeu mil vacas, 25 garrotes e uma fazendona para criar, recriar e engordar a produção. Feito na vida.
Contente, o neto começou a discordar daquele atraso do velho, que ensinava: “Olho do dono é que engorda o boi”. Tirou do pasto as mil vacas e soltou-as no computador, onde passou a criá-las. De uma confortável cadeira fazia a “evolução do rebanho”, expressão que lera em revista especializada. As vacas começaram a parir certas. No fim do ano havia 910 crias, ótima média. Bem melhor que a do avô. Metade macho e a outra fêmea. Quatro anos depois, já vendia boiada gorda, que era substituída pelos da recria. No computador, agora trocado por um mais moderno, chegou a criar seis mil cabeças, sua meta para superar o atraso do velho. Tudo sem precisar se tolar com bosta de boi.
Como precisava modernizar o sistema, e porque também careceu de vender gado para pagar ao banco, que já o ameaçava de execução, foi à fazenda, depois de alguns anos. Levou outro computador e um técnico para que lá processasse os dados, remetendo-os em seguida para a capital. Um passo à frente para melhorar os processos antigos, já ultrapassados, na exploração da pecuária.
Encontrou o desmantelo. Só havia 800 vacas, já envelhecendo. As mangas viraram capoeiras. Os reprodutores não existiam mais. Muito gado de aluguel pastando onde antes só havia colonhão cobrindo até as cercas. Os ladrões tinham construído uma porteira na manga do fundo para a retirada do gado que o computador criava. Só aí se convenceu: “Olho do dono é que engorda o boi”.