O Natal de epa epa
Euclides Neto
Folha do Interior - Ipiaú - Ba - 1991
O Natal sugere família, infância e saudade. Nós mateiros, das terras da Tesoura, não o tínhamos com os badalos de hoje. O São João era a festa maior. Mas não me esqueço enternecido de Eurico Leite, pai do Quarteto em Cl, encostado a um lampião (de querosene, é claro) a perguntar: “Papai Noel o que você tem? É felicidade...” Ouço-o até hoje, quando se aproxima a data do nascimento do Cristianismo. E, por coincidência, estava a ler o “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de Saramago, presente de Natal de Angélia, quando ouço uma outra toada, de uma nota só, que se torna monótona, pois que lembra a elegia e o grito de dois terços da humanidade: Êpa!... Êpa!... No nosso ambulante vendedor de pão. Levanto o rosto do livro, olho o céu enevoado, recordo Eurico Leite na penumbra da infância, as ruas ainda mescladas de telhas e palhas, os poucos lampiões parindo fantasmas nas noites chuvosas. E o canto fica na lamúria da solidão. Sinto saudades dos netos, todos ausentes. Neles, continuo menino. Passo na memória as notas musicais dos seus nomes, e componho o meu canto. Consolo-me: estaremos juntos, aqui, em nossa Ipiaú, no dia 25.
Mas a outra canção, a que ouço do velhinho, de barbas crespas e olhos encovados, empurrando, não o trenó, porém o seu carro de pão, deixa-me a pensar. Quantos filhos ele teve? Quantos netos? Quantos estarão com ele no mesmo dia em que os meus estarão comigo? O seu filho foi cruelmente assassinado. Contou-me em prantos e arrematava, sofrendo: — É... Podia ser errado... Muito errado... Mas era meu filho. Não tinham o direito de matar.
Quis entender o simbolismo daquele homem, suado, roto, capanga a tiracolo, onde guarda os trocados, envelhecendo como um animal de carga. Lembro também que o meu primeiro neto, Pedro, filho do caçula Marcelo, quando aprendia a falar mamãe e papai, já gritava sorrindo, de tanto ouvi-lo:
— Êpa... êpa...
Lá vai o velhinho, a distribuir o pão de cada dia, anunciando:
— Êpa...! Êpa...!
Sua voz neste Natal já é mais fraca, sumida, quase um gemido, na dignidade de empurrar a pesada carga da vida, pelas ruas de Ipiaú.
Feliz Natal, Êpa Êpa.
Que em 92 o seu carrinho de pão fique mais leve.
E haja pão para todos.