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O Gato comeu as Reformas

Euclides Neto

Folha do cacau - Camacan - BA - 1985

Folha do Cacau, 13 de setembro de 1985

 

O Gato comeu as Reformas

 

No tempo do finado João Goulart falou-se enfaticamente nas reformas. As chamadas reformas de base. Começou-se até a mexer nelas. Deu no que não se precisa relembrar.

Não chegamos à heresia de afirmar que as forças armadas são entreguistas e antipatrióticas. Não. No mínimo, são ingênuas. Não têm a malícia do paisano da esquina nem o gingado da malandragem política. E, como ingênuas, deixam-se levar pela notícia de que os comunistas continuam acampados na Esplanada dos Ministérios. Mesmo que não estejam, os espertos convencem-nas de que lá se fincaram de barraca e molotofe. E até hoje não entendemos esse medo tripal aos que defendem a classe operária no poder.

Falam atualmente na plena democracia conquistada, nas liberdades disso e daquilo. Esquecem-se, contudo, de que ainda não temos a liberdade de não temer os militares. Os fantasmas deles ainda povoam o/a Alvorada.

Mas dizíamos das reformas. Possivelmente, a mais difícil seja a bancária. Bulir no dinheiro que só pare juros, os chamados filhotes do diabo, só depois que passarem por cima do cadáver de Magalhães Pinto. E este, falador, protestador, gato de boca cheia (e só agora sem miar), revolucionário das primevas horas, jiboia hoje a presa fácil. Sendo dono de vários bancos, vive a quadra das vacas amojadas. Está quieto, sonolento, roendo a espiga de milho no canto do paiol, se preferem outra comparação. Reparem que no regime de cultivar o dinheiro pelo dinheiro, ele, o ladino, não reclamou mais. Quando Valdir Pires cutucou os bancos com vara curta, chamando-os às falas, aconteceu até greve organizada, conquanto os previdenciários esclarecidos soubessem que ele, o Ministro, com a falcatrua histórica reinante, deficit, etc. nada podia fazer em prol dos funcionários. Qualquer massa falida deixa de pagar aos servidores, quanto mais dar aumentos. Sabiam disso, mas, por detrás, morava a vontade dos graúdos de derrubar o Ministro. Quem mandou ele bulir com os bancos. Ainda bem que o lado sadio da classe compensou, logo depois, o equívoco, hipotecando solidariedade, ao Chefe corajoso.

 Em reforma bancária nunca mais ninguém falou. Os juros exundiosos continuam a alimentar a fome do povo, o frio e a nudez na carestia dos tecidos, os remédios das multinacionais, a carência da habitação, o analfabetismo no preço do ensino, porque os juros, em último fim, vão bater nas costelas do consumidor. Se o comerciante e o industrial tomam dinheiro para seus negócios, claro que repassarão os custos a quem vai comer, vestir, morar. Mas dirão: Magalhães Pinto também sofre ao comprar o seu quilo de açúcar. Claro. Porém, a ele isso nada significa. É até mais doce saber que da sua xícara de café evola-se o oloroso perfume do lucro.

 O Banco do Brasil, esse monumento de organização, seriedade e bons propósitos, não foge à regra no presente. Criado para fomentar bem-estar social, preocupa-se mais com o resultado líquido e frio dos balancetes. É que, por seu redor, andam os 49% de acionistas, manobrando-o, empenhados em arrancar vantagens como um agiota qualquer. Na hora dos lucros é aquele despropósito. E ainda há os desavisados que vão na conversa de que deve ser assim mesmo para competir com os bancos particulares. Lucro de banco oficial teria de aparecer pela estatística da produção de feijão e leite, aumentada com os empréstimos, e não nos balancetes. Ainda mascaram tudo isso pulverizando meia pataca de ações pelo interior, guardando as aparências. Ou distribuindo pataca e meia pelos heroicos e abnegados funcionários. Para os tolos! O grosso, o gordo, a rabada larga ficam nas mãos dos poucos espertalhões das chamadas autoridades competentes, que bufam tranquilos e ganham sem produzir. Ah! que saudades que temos dos tempos do nosso querido BB, juros de estimular lavrador a criar vaca, mateiro plantar mandioca, catingueiro criar bode, roceiro semear feijão.

Falem em reforma bancária! Dirão logo aos militares: é comunismo. Na Albânia é que todos os bancos foram estatizados e funcionam em razão da safra de utilidades para os operários.

 Da reforma urbana é o mesmo. Sob o estandarte sacrossanto do regime da livre empresa, os espertos adquirem os terrenos das cidades e vão coçar o impublicável deles na rede. Se o povo não tem onde habitar, pouco importa. O certo é que os loteamentos engordem, as fortunas cresçam. Se os sem-morada invadem para abrigar-se, isto é dedo dos comunistas. Logo, precisa-se de uma revolução: salvemos a propriedade (em primeiro lugar), a família e a tradição!

Reforma fiscal? Quem mais paga é quem menos deve pagar. Virou tabu falar no assunto. No máximo se cogita dela em relação ao município sem alterar qualquer mudança quanto ao contribuinte.

 Reforma administrativa com um governador nomeando (em tempo de “é proibido gastar”) dezesseis mil afilhados, sem faltar o parente da dona Carmem...

 Soltaram o balão da reforma agrária. Pegou fogo antes de subir. Quando se tenta mexer nela aparecem os proprietários da verdade — ministro e general — a dizerem que “no governo tem muito comunista para meu gosto”. Pensam que foi por outra razão? Não. A explosiva reforma agrária é a responsável por tal denúncia. É que reforma agrária é sinônimo de comunismo, como o foi no passado a defesa do petróleo. Tanto que a rapaziada pícara do TFP anda faturando seguro em cima dos fazendeiros assustados. Enquanto isso, nós agropecuaristas continuamos a incorrer no mesmo erro: construímos a barragem, mas deixamos o sangradouro apertado, tentando reter toda a água das enchentes. Resultado: vem o temporal e a pressão enlouquecida dos aguaceiros leva tudo. Nem mel nem combuca. Perde-se a barragem inteira. Assim aconteceu com os povos que não perceberam a pressão da avalancha popular.

 É que reforma significa mudar, mexer profundamente na estrutura da filosofia governista, limpar a cabeça dessa gente que vem do mesmo útero da ditadura. Querem mudar a roupa e a gravata para ir à festa, mas a música é a mesma.

 E todos temem ainda o fantasma. Falar em reforma de base significa ver Magalhães Pinto vestir túnica e pistola, botar os militares na rua, “quem for brasileiro, siga-me”. Ele e os outros heróis de 64, já agora de bico doce, sem falar nos irmãos do Norte sempre prontos para tais ocasiões. Aí os ingênuos militares acreditam em comunismo como se tivessem medo de bicho-papão. Dizem que os vermelhos são uns poucos, derrotados, não chegam a eleger um vereador, mas andam apavorados com eles. São dois fantasmas a rondar: um com medo do outro. Com uma única diferença: enquanto um tem metralhadoras, canhões, mísseis, o outro tem uma ideia. Tudo isso vem contribuindo para que o gato coma as reformas. E os ratos também.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).