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O catecismo de Josaphat Marinho

Euclides Neto

A TARDE - Salvador - BA - 1999

 

Como os doutores não se manifestaram até o momento, peço vênia para escrevinhar algumas linhas (sempre mal garatujadas) sobre o notável livro DIREITO SOCIEDADE & ESTADO. Esta opinião, que não chega a ser crítica (quem sou eu?) lembra o convite que o rei mandou a todos os nobres para as bodas da filha, e, como não compareceram, resolveu ele chamar os plebeus e mendigos encontrados pelas estradas a sentarem-se à mesa do banquete.

               

Vejo o professor Josaphat por inteiro nessa obra, sem faltar vírgula e gesto, quando nos ensinava na Escola de Direito. Há mais de uma banda de século, pertencemos à turma de 1949, que festejou os 400 anos da Cidade do Salvador, e o centenário de Rui Barbosa. Os demais mestres já se transformaram em saudade. Só vive Josaphat. Também era quase um menino àquela época, mais jovem que muitos dos seus alunos. O importante é que seus ideais não envelheceram, nem a ética, nem a honradez, nem a probidade. Tais virtudes não envelhecem — são eternas.

                À primeira vista, parece ser mais um repetitivo molho de artigos já lidos, publicados e requentados. Mas, no seu conjunto, é a biografia da obra de alguém que continua na cátedra, ensinando, pregando, doutrinando, dizendo da história do pensamento de uma época em que os ingredientes do comunismo e do capitalismo foram postos no mesmo cadinho e levados ao fogo dos debates nas ruas, escolas, eitos, fábricas e até no Parlamento. Estou a ouvi-lo, como ora o leio, sob o fogo cruzado dos debates sobre a liberdade, no fim da Segunda Guerra Mundial. Quando as trincheiras das ideias não eram menos aguerridas que as batalhas da Europa. Com uma característica fundamental: nos tempos atuais de adulação e chalaças não se nota um traço de subserviência. Sequer aparecem os nomes do seu partido e correligionários (interpretação que deixaria para Lacan). O autor é um arquipélago de coerência, altivez moral e intelectual. Respeitam-no. Não é o grito que o deixa forte — é a postura, a palavra exata e oportuna. Não vence pela blandícia, beija-mão, ou tomalá-dacá. É o senador por excelência. Não banca o respondão. Debate com superioridade. Dele não se fala em contas na ilha nem pastas nem precatórios nem gente sua entupindo repartições públicas.

                Como político nato, na concepção maior, o livro passa a ser um tratado da arte de dirigir os povos, e, até quando perguntado por um estudante do Instituto Social da Bahia sobre o nosso idioma, não responde simplesmente “que vai mal o vernáculo no Brasil”, acrescenta com humanismo, fugindo aparentemente ao objeto da inquirição: “Em nosso País, com as diferenças sociais, econômicas e culturais entre as regiões aconselha ao maior número... assegurar condições de reduzir os intoleráveis desequilíbrios existentes”.

                 Não sendo um simples feixe de artigos noticiosos de jornal, aprofunda-se no trato de altas questões, sobretudo constitucionais, transforma-os em compêndio da ciência aplicada do direito. Com um reparo: não dá a ênfase devida à reforma agrária, nem nos capítulos Problemas do Nordeste, Para o Nordeste e Desemprego, ao saber que a mão de obra só será aproveitada quando houver uma melhor distribuição da terra, evitando- se o êxodo rural, resolvendo- se a comida, a morada, combatendo a violência urbana — os maiores problemas do Brasil. Não bastam os artigos como Reflexos da Voz do Campo e O Problema da Terra. O tema, ao meu ver — talvez seja eu até suspeito para falar do assunto — foi lavrado pela rama.

                Ao anunciar conceitos abstratos ao sabor dos teóricos, tempera-os com a realidade do social. Não chega a ser um Plekhanov (mostrar o belo da arte, sem esquecer a revolução). Talvez se aproxime mais de Gramsci.

                 Chegando à página 424, imagina-se que Josaphat jamais pertenceu ao partido no qual está inscrito. Continua correligionário de João Mangueira. Imbuído das ideias de Rui, tem a coragem de afirmar “não é só a violência militar de Diadema que merece repúdio”, mas também o abusivo uso das medidas provisórias. Aí supera o Águia que, tendo escrito um libelo (comentado neste caderno por Florisvaldo Mattos) condenando os militares em Canudos, não o pronunciou. E olha que Rui era destemido, mesmo quando vestia o discurso com a erudição – sempre combatendo as injustiças, contra as quais ninguém poderia ficar omisso. O tradutor de O Papa e o Concílio temeu o clero, os latifundiários e, conquanto republicano, até os monarquistas rançosos. Josaphat não se arreceou. Bate firme.

                Outra conclusão: foi mais oposicionista, bem mais, que muitos que se dizem sê- lo. Usa uma espada mui afiada, vai fundo sem os ruídos dos que a esgrime com o gume tosco. Dizem que Tolstói, copiado por Gandhi, fez mais a Revolução de 17 do que Lênin. É que o autor de Guerra e Paz trabalhou a alma do povo, enquanto o grande seguidor de Marx cria mais nas baionetas.

                 Ao defender o socialismo e condenar o neoliberalismo, no capítulo Conservadores e Socialistas, até parece que vai concluir pedindo o afastamento do seu partido. Lacan teria muito que explicar neste admirável Direito, Sociedade & Estado.

                Referindo- se à Reeleição e Interesse Geral sustenta que as emendas subvertem critérios dominantes da Constituição, advertindo: “No processo democrático a divergência educada, e não a acomodação sem limites”.

                Até nas afirmativas, aparentemente de efeito, condena a despedida de um operário do ABC, e lembra: “O pão da despedida não deve ser o fermento de ebulição perigosa”. Mostra que não sofre do pânico (doença mental epidêmica e da atualidade) de desagradar os mandões. Seu líder é a própria consciência.

                 Defende a incontinência política dos jovens como se fosse um deles, no recreio do Ginásio da Bahia, dos tempos velhos. Até lembra Oração aos Moços, do guru, sempre citado. Excepcionalmente traz o nome de políticos, jamais dos correligionários atuais (vide Lacan). Ao pretender valorizar a ética, recorda Milton Campos, quando o então senador solicita exoneração do Ministério da Justiça, sem dizer que se despedia do poder porque atos desrespeitosos de direitos políticos aconteceriam. Mostra o mestre da ética.

                 Insurge-se muitas vezes contra a reforma da Constituição, que considera sempre pétrea, salvo nas exceções do Artigo 60. Condena os casuísmos, males que desestabilizam instituições democráticas. Livro de doutrina e pregação. Linguagem apurada à Vieira. Digno de ser estudado nas universidades e fazer parte de curso a ser ministrado aos candidatos de todos os partidos, assim como os noivos estudam o Catecismo antes do casamento.

                 Quando a Bahia resolver ser grata a um dos seus filhos mais ilustres, que não tem o seu nome em um beco, escolinha do mato, pracinha de subúrbio, trilha de arraial nem no cubículo onde trabalha o Juiz de Paz da roça, talvez o ensinamento “a vitória real não consiste na conquista do poder, mas em fazê-lo instrumento da felicidade coletiva” possa estar na entrada do Congresso ou no saguão de um fórum, com o seu nome, como outro baiano, também relator-geral do Projeto do Código Civil. Figurar nas placas das estradas asfaltadas e obeliscos de inaugurações. Nas avenidas paralelas, oblíquas, perpendiculares. Quem sabe, até substituindo o nome do município de Areia (hoje Ubaíra), já aí com o meu protesto, pois odeio o culto à personalidade, e nasci numa fazendinha, situada no distrito de Jenipapo, tudo banhado pelo mesmo rio Jequiriçá, em cujas águas o ora escrevedor e o autor tomamos o primeiro banho. Aliás, advirto: não adianta mudar a gloriosa alcunha de Jenipapo, no oitão da estaçãozinha da vila, internacional para nós da boa terra (nossa aldeia é o universo, Tolstói), onde parava o trem de Nazaré, para escrever o mal sonante epíteto de Patioba, como os iconoclastas já o fizeram, porque nós, até com armas na mão, restabeleceremos o antigo nome muito mais heroico.

                 Resta-nos lembrar: a palavra dos sábios tem mais memória que o bronze dos enaltecidos. Cobramos, agora, um outro livro, reunindo conferências, prefácios como o que está no comentário A Constituição do Brasil ao alcance de todos, de Paulo Sarasate, discursos políticos e acadêmicos, para que tenhamos obras completas de Josaphat Marinho.

 

 

 

 

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).