Modernidade
Euclides Neto
Tribuna da Bahia - Salvador-BA - 1993
Aconteceu. Na horta comunitária municipal trabalhavam 96 mulheres. Todas abandonadas: pela viuvez ou sem-vergonhice dos maridos. Carregavam a penca de filhos, na escadinha. Ali plantavam de um tudo que dá ligeiro: coentro, cebolinha verde, alface, traquinada miúda de encher o balaio e sair mercando, sem enfusar um talo.
Olhando de longe, era um formigueiro de gente labutando nas leiras recortadas em xadrez. Pelo meio, também na lida, os que seriam meninos de rua, arrancando o teimoso dandá e demais ervas pestilentas. Não há lei que limite a idade para o começo ou o fim do trabalho na casa do pobre. Depende da força do braço, que pode começar aos três anos e avançar pelos noventa.
Misturados, sogras e avós adjutorando. São criaturas que não gostam de ficar em casa abrindo a boca na preguiça de gato de pensão. Cada um contribui com seu tantinho. Trabalho de menino é pouco, mas quem não o aproveita é louco. Melhor estar ali sob a vista da mãe e na escola da lavoura, que nas praças e becos quebrando a vidraça da sala de aula, desperdiçando energia. Dando prejuízo e aprendendo o que não deve. Sala de aula, aliás, que não chega para o bico daquele pessoalzinho. Bebês apojam regalados à sombra da jaqueira-creche.
A lida na terra lava a alma, e cada mãe colhe um salário mínimo, afora o sobejo da plantação que tempera o pirão, cria a galinha e o bacorinho da ceva. Sem contar com a alegria de ser livre para mercar suas traquinadas pelas ruas, sem pedir esmola, voltando pra casa com a mochila pesada de trocados e a alma ouvindo cantigas.
Aí chega o doutor moderno para ensinar a tecnologia. Espancar o atraso. Ele quer plantar a modernidade. E vai dizendo que daquele jeito jamais haverá produtividade para enfrentar a livre concorrência, competindo no mercado externo, leira da felicidade humana. Promete resolver a situação de penúria com uma enxadada: é só assentar um pivô central, que irrigará os 5 hectares do projetito. Em vez de 96 mulheres e tantos meninos usando o regador, ou a cuia, na miserável área de 420 metros quadrados de cada família, só precisa de seis ou oito trabalhadores. Assim mesmo, só na época da colheita. Na entressafra, só um empregado. Garante quintuplicar a produção e o lucro. Em vez de um salário, a renda subirá a tantos e quantos.
Alguém perguntou ao ph.D. da economia: e as mulheres e os meninos vão trabalhar onde, doutor? E cadê o cobre para comprar o pivô, doutor? E rendendo mundos e fundos quem vai ficar com os mundos e fundos, doutor?
Bem, respondeu o sábio homem: se for pensar assim, jamais o Brasil sairá do atraso. Precisamos de modernidade.
E como se vai matar a fome do povo antes que a fome o mate, doutor?