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Meu Caro Hélio.

Euclides Neto para Hélio Pólvora

Ipiaú - Ba - 1984

 

                Até hoje não dei notícia do recebimento dos seus livros pelo mesmo motivo que as meninas pudicas da roça temem escrever ao namorado da cidade: escabreação de dizer asneira.

                Creia-me, contudo, no enlevo com que li reli as prendas suas. O Grito da Perdiz leva a desculpa de ter sido arrebatado pelo Talma Reis e só agora devolvido, confessando ele que leu e remoeu, encantado.

                Não entendendo das filigranas do versejar, confesso a existência do meu instinto matuto pelo que o seu Taine apelidou de Belo artístico. Poesia entra-me instintivamente assim como animais uivam à lua e o sabiá que mais entoa é o que mora perto das águas encaracoladas. Meu litro é raso para medir os admiráveis versos de Cigarras Outonais, digo, Cigarras da Vida Inteira. Comovi-me ao ripio, lembrando-me das olegarianas estivais. Encantou-me a brejeirice da rima jaca com paca. Paca que meu pai caçava e, até à ponta de rama dos seus dias, ainda eu o acompanhava nos trilhos e destrilhos das veredas. Recordei as jaqueiras do terreiro de minha casa, piparoteadas todas as manhãs pelo menino da roça, hoje frustrado, porque jamais pôde cantá-las com a doçura dos versos, talvez devido ao pudor arraigado de que o chique é poetar maçãs, uvas e peras, sonoros e aristocráticos pomos de além-terra, fugindo ao pejorativo de papa-jaca, vivente da esquisita nação do cacau, onde, em conjunção de quadra:

filho não dá bença a pai,

facão não sai da bainha,

cachorro não late.

Tudo porque o visgo da dita cuja não deixa

Sem o lilás da saudade, olhos encharcados, apertucho no peito, cosca no umbigo não existe poesia. É do meu apreceio, indo às lágrimas, ouvir MEUS OITO ANOS, Órfã da Costura, Meu Cão Veludo. Por aí você percebe que sou um primário na fina arte de Camões. Troco tapa com quem afirma que poesia só se faz com palavras e não com emoções e ideias. Pra o diabo que os carregue, seu Mallarmé!

                Sua poesia, meu caro Hélio, não é só de palavras, pois que estas equivalem a mármore, madeira, bronze, matéria morta a pedir sentimento, ideia.

 

“Mais vale ser cigarra, é o que digo:

gemer, chiar, cedo acabar comigo

que ser formiga com o seu contrapeso”.

                Tal estrofe traz a mensagem diferente da fábula cigarria. Menos pragmática. Menos mercantilista: mais bela e sutil.

                Poesia sem o sopro da emoção, só com palavras, seria o mesmo que frasco sem perfume, corpo sem alma, flor sem cheiro, mulher sem odor de la femme (é assim mesmo que escreve?). De nada valeria arquitetura do verso sem a cinza do desencanto, silêncio dos tempos mortos:

“Sou alheio sonho ou fiz os traços?

Não sei. É que ando aos trompaços,

em voos cegos, curtos, de cigarras.”

                Você encastoa as gemas raras e preciosas das palavras sem temer usar o ouro bruto de expressões como “trompaços”, “contrapeso” ( que cheira a taco de carne de jabá na balança), pouco poética quase lembrando epigrama, mas ressaltando o contraste lindamente. Lembra aquelas esculturas feitas com sucatas de relógios, carros, máquinas velhas. Tudo com propriedade criadora.

                Belezura de sonetos. Leio e releio, descobrindo pedras raras, assim como quem bateia muitas vezes areias diamantinas.

                Quanto ao Grito da Perdiz: reparei a falta do Arroto no título. Certamente a palavra sugere vômito para os citadinos. Daí a mudança para satisfazer a era da correção monetária. Todos nós vivemos a torquês do consumo. Prefiro o trompaço, contrapeso e outros apelidos nossos. Ainda bem que não mudaram para Eructação da Perdiz. Aí, sim, com licença da má palavra

, era caso de mandar para a puta que os pariu.

                Os contos são admiráveis, até mesmo o último, onde você caçoa do amigo. Valem pela leveza do prosear. Você é, realmente, mestre.

                Estava com estas mal traçadas prontas, quando recebi, ontem, sua apreciação sobre o 64 e Outros Bichos. Obrigado. Quanto ao Rapadura, Cobras e Lagartos tenho a informar: o Professor Silva Melo escreveu-me parabenizando a introdução, aqui em Ipiaú, da rapadura na merenda escolar; e outro dia, estando com meu genro, de nome Gerbase, na catinga, servi, durante dois dias, fina caça do mato, que ele deglutia deliciado. Contando o caso a um epigramista daqui, ele versejou:

O famoso autor de OS GENROS

tornou-se um sogro cruel

servindo ao Dr. Gerbase

um prato de cascavel.

Meu abraço, afeto e bem querer. Lembranças à Maria.

 

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).