Menino mateiro
Euclides Neto
Tribuna da Bahia - Salvador - BA - 1992
Ipiaú – 5 de abril de 1992
Menino mateiro
No encontro dos vales, os homens cravaram as moradas de taipa, indaiá, chão batido com folhas de bananeiras, encastoadas entre os ribeirões da Sapucaia e da Formiga. Oco do mundo, que depois se chamou Tesouras, hoje Ibirataia. Em volta, a floresta, velhaca, braba, úmida, riscada pelas veredas, que davam: de um lado, ao Norte – às caatingas de Jequié; do outro, às espantosas Matas do Sul, Ilhéus, longe, muito longe, mais distante que a Lua. Esta dali se via, mostrando São Jorge, feito um pinto de gavião no ovo, montado em seu valente cavalo de luz e prata. Tão pertinho que nós o apontávamos com o dedo crédulo.
Nossa coragem ia além da clareira em volta, crescida de verão em verão, com o fogo devorando as derrubadas e o cacau cobrindo os boqueirões.
Ouvia-se falar de Ilhéus, na lonjura cinza, além do azul, onde viviam gringos suíços, corados, gordos, morando em sobrados mais altos que os jequitibás-bós. Gente rica, podre de rica, que calçava os passeios com moedas, banhava cavalo esquipador com cerveja, acendia charutos com cédulas graúdas, colhia milhares de arrobas de cacau, quando os do lugar não chegavam a setecentas. Lá existiam também mulheres bonitas, mulheres danadas, pitando cigarros compridos, espetados em tubinhos de ouro.
Os casos de Ilhéus se confundiam com as histórias encantadas de reis, rainhas, castelos cravejados de brilhantes, rubis e esmeraldas, que também ouvíamos.
Ficávamos a imaginar aquela terra de riqueza e maravilhas, pegada ao mar sem fim, de onde vinham os búzios trazendo a zoeira das marés enchendo e vazando, com a voz dos príncipes e princesas.
Montávamos em cavalo-de-pau, levando as nossas repetições feitas com bananeiras bravas, iguais às armas dos valentes homens de Ilhéus. Nossos revólveres de faz-de-conta tinham como os de lá os cabos de madrepérola.
Ilhéus era uma remota paisagem na imaginação desocupada e livre. Desejávamos sempre que aparecesse alguém daquelas terras.
Até que chegou a noticia. Senhor Bispo estaria chegando. Os lavradores limparam os metais das suas cabeçadas, arearam as caçambas com cinza e limão. Lavaram os cavalos de passo-picado. Enfeitaram as casas e ruelas com palmas de pati.
No dia anunciado, logo cedo, ouviram-se os protestos das leitoas na faca, espirrou sangue dos perus-papos-pelados. Era o sacrifício do sangue bíblico para receber o santo padre.
O foquetório pipocou na volta da estrada. Ladeados pelos importantes, chegavam os ilheenses. Um para a sagrada Missão. O outro aproveitaria a festa, buscando encontrar-se com os novos produtores de cacau.
Dom Eduardo vestia roupas luminosas de prata e ouro, cruz reluzente ao peito e anelão brilhante no dedo. Seu Wildberger, lorde, relógio de ouro, caneta de ouro, óculos de ouro, abotoaduras de ouro. Gordos e corados, quase tão vermelhos quanto os passarinhos tapirangas.
Não tivemos surpresa. Toda a gente de Ilhéus só podia ser assim. Só faltaram as repetições e os revólveres de madrepérola.