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Literatura para o povo

Euclides Neto

Revista do Centro de Estudos Portugueses Hélio Simões - Ilhéus - Ba - 1998

Revista do Centro de Estudos Portugueses Hélio Simões/Universidade Estadual de Santa Cruz, Departamento de Letras e Artes Nº 1 (1997/1998) - Ilhéus: Editus, 1998.

            O meu depoimento – e aqui já está o social – é de um trabalhador rural que defende a arte não como um privilégio de poucos, mas como um direito de muitos. O homem não é somente um animal político, mas é também um animal artístico. O homem pensa o belo como uma necessidade. Vi isso certa vez, quando eu viajava no Amazonas e notava, lá nas palafitas à margem do rio, aquelas casinhas suspensas e um estendal, um pequeno estendal de um metro quadrado, onde estavam as flores plantadas – o sentido do belo.

            O trabalhador, o mais humilde, aquele da roça, o que não sabe ler, ele planta no seu jardim uma rosa, uma rosa-menina, um cravo – é o belo. Nós chegamos ao requinte de encontrar nas palhoças, aqui das nossas roças cacaueiras, naquelas casas modestas, não um quadro de Gauguin, mas uma folhinha, qualquer coisa que lembre o belo. Eu mesmo vivi numa pequena cidade da região e morava numa rua chamada Rua dos Artistas, e quem eram os artistas? Eram o pedreiro, o marceneiro, o ferreiro, o seleiro, enfim, os homens que trabalhavam e justificavam coisas que mais tarde eu li, como por exemplo que “a arte nasce do trabalho”.

            A primeira manifestação de arte do homem foi no paleolítico, quando começou a fazer as suas garatujas, os seus desenhos, voltados exatamente para aquilo que faziam. Eu gostaria de lembrar Gramsci quando ele diz que a arte tem que ter mais que o belo – tem que ter o conteúdo político. Eu, pessoalmente, acho que seria um luxo muito grande termos a arte pela arte, o belo pelo belo. A coisa voltada só para dentro de si. A palavra pela palavra. Como naquele caso em que o grande pintor Degas chegou para Mallarmé e disse: “Ah, eu tenho muitas ideias. Estou tentando fazer um poema e não consigo”. Ao que Mallarmé respondeu: “O poema não se faz com ideias, o poema é feito com palavras”.

            Eu acho pouco, porque o poema, além da palavra, além da tinta da palavra, da vivacidade da palavra, daquilo que ela representa em si com todo o seu colorido, tem que ter um conteúdo político. E seu colorido, tem que ter um conteúdo político. E nós, prezados irmãos – sobretudo da África e de Portugal –, nós do Brasil, que temos 42 milhões de famintos, será que nós poderíamos ou teríamos direito de fazer arte pela arte – a torre de marfim? Será que não deveríamos contar a história do povo para o povo, para que ele entendesse? Será que o ideal não estaria no Dom Quixote – história que o gênio entende e, quando contada ao analfabeto, ele também entende?

            Eu creio que aí estaria a concepção maior da arte: se a sua penetração estivesse em todos os setores sociais. E agora me ocorre uma lembrança: Ibsen, o dramaturgo irlandês, foi acusado por Joyce de estar empobrecendo ao escrever sobre o folclore, ao que Ibsen pegou uma obra de Joyce e disse: “Isso aqui que você está publicando com tanto sucesso para os intelectuais, é evidente que plagiou de um escritor que fez folclore”.

            Certa feita também – e reparem que a memória está me trazendo coisas assim lidas e relidas, e talvez até mal aprendidas –, Baudelaire dizia que a arte tinha que ser a preocupação com o belo. Evidente que não se pode fazer arte sem o belo, sem a sensibilidade; mas o povo, aquele trabalhador rural, ele pode não entender bem a arte, mas ele a sente. Toque uma música de Wagner, que já é mais sofisticada, ou de Liszt, reparem que ele para; alguma coisa está acontecendo, ele não sabe explicar – mas a arte nem sempre precisa ser explicada, nem sempre precisa ser entendida, ela precisa ser sentida.

            Quanto a mim, que sou mais “regionalista” que os outros porque me considero criador de cabras, moro e sou do interior e do interior não saio, eu quis fazer uma obra e até pensei em erudição, reparem o meu pecado! Quando eu escrevi o dicionário das expressões típicas da região do cacau, que ofereci aos trabalhadores da roça e à Universidade, a preocupação foi de resgatar a linguagem dessa gente.

            Porque é curioso, o trabalhador ainda usa expressões que foram geradas no século XIII ou no século XIV. Puras, continuam cristalinas – e chamo inclusive a atenção dos gramáticos, dos filólogos, para que não se riam quando ouvirem um nome que um homem de pés descalços da feira profere, pensando que está errado. O homem da roça preserva a pureza do nosso português, criado por Camões, embelezado por Eça de Queiroz, e que recebeu sangue, alma e nervos com José Saramago. Então esse português continua sendo trabalhado no Brasil através dos tempos, e continuará.

            O povo – o trabalhador, o vaqueiro – cria metáforas admiráveis. Aqui, quando uma égua está no cio, o vaqueiro diz que ela está “vagalumando”, do verbo vagalumar. E então se imagina: o que tem a égua com o vagalume? De onde surgiu esse verbo? Pois vagalumar significa o seguinte: a égua, quando entra no cio, sua vulva abre e fecha, “vagalumando”; mostra a mucosa vermelha, que “acende”, como o vagalume, uma luz, e também na traseira. Tem metáfora mais bonita do que esta? Se tiver, vocês, escritores, me indiquem. Então como é que se pode desprezar esse povo e depois dizer que ele não entende de arte?

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ipiaú-BA (1925-2000).