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Fome nas terras de Canaã

Euclides Neto

Tribuna da Bahia - Salvador-BA - 1993

Quem andou ou leu o mundo sabe não existirem terras melhores que as da região cacaueira; pelo menos, no Brasil. Com certeza, na Bahia. Aqui se planta o que se quer e cria o que entender. Do cacau (talvez a planta mais exigente em clima, solo, chuva) à pimenta-do-reino, cravo, tâmara. Não dá cacau no oeste roxo do Paraná, de chão fertilíssimo, mas aqui dá café e soja. Nem dá cacau nos soberbos solos da Ucrânia. Plante-se girassol, beterraba de açúcar ou trigo de lá nas terras grapiúnas. Dá. Querendo, cria-se do carneiro merinó à vaca jersey.

Somos riscados por estradas como uma teia de aranha. Não são as melhores, mas servem. A energia elétrica está, pode-se dizer, estirada por toda parte. Estamos ligados aos centros, capitais e Distrito Federal, por vias asfálticas. Possuímos portos marítimos à mão. Aeroportos bem-distribuídos.

Temos um órgão de assistência técnica, a Ceplac, instalado e dirigido com o que há de melhor no mundo. Funcionam uma universidade e muitas escolas agrotécnicas. Recebemos crédito manso, lerdo no vencimento, quase doação de dinheiro, durante anos.

Somos descendentes de uma raça que plantou essa riqueza na mata bruta, sozinha, sem estrada, sem médico, sem escola, sem energia, sem crédito, contra o paludismo, as cheias, os riscos das derrubadas, a violência, e que vem se acabar em nossas mãos. Parecemos uma nobreza em decadência.

Hoje, somos cerca de 9 milhões de quebrados e famintos. Mais de 70% dos trabalhadores de braços cruzados ou ausentes da região procurando serviço, deixando aqui somente as esposas e filhos abandonados.

Que diabo aconteceu com a gente?

Foi o governo? Mas o governo somos nós. São os deputados? Mas os deputados nós elegemos. As cooperativas? Mas as cooperativas foram dirigidas e fiscalizadas por nós. Foi o preço do cacau? Mas ele sempre oscilou. Foi a TR? Mas antes dela também tivemos crise. Exportamos um US$ 1 bilhão. Consumimos. E por onde anda a nossa culpa? Na monocultura? Tenhamos a coragem de afirmar que abandonamos as fazendas. Não somos agricultores. Somos meros vendedores de cacau, que outros plantaram, colhem e secam. Gastamos. Consumimos.

Precisamos voltar para as roças. Ser lavrador de verdade como comerciante fica ao pé do balcão. Plantar e criar o que a terra aconselha, sobretudo comida. Nem só de cacau vive o homem. Fosse assim, as fazendas de uva, soja, arroz, milho, que fazem a prosperidade de tantos, não sobreviveriam. Não basta mais ter cacau. É preciso efetivamente trabalhar na terra, como faz qualquer agricultor.

Caso contrário, nossa região só vai prestar como turismo, aproveitando o Monte Pascoal, os remanescentes dos pataxós, o Marco do Descobrimento, as obras do tempo da Capitania de Ilhéus e a eterna beleza do mar, que não dependeram de nós. Nós, proprietários de terras tão prodigiosas fomos incapazes.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ipiaú-BA (1925-2000).