Fazendeiros e trabalhadores rurais
Euclides Neto
Folha do cacau - Camacan - BA - 0001
O fazendeiro está armado mentalmente contra o seu trabalhador. Existe uma guerra fria, levando o primeiro a ver o segundo como o inimigo, pronto para roubá-lo, apresentar reclamação trabalhista, botar fogo na roça, arrancar os birros, mutilar os cacaueiros. Quando o assalariado aparece na presença do patrão, este já o recebe de cara amarrada, impaciente, espinhos arreganhados: ouriço-cacheiro em defesa. Tal estado de guarda existe também no diarista, conquanto seja menos acentuado.
Foi-se o tempo em que a fazenda era um lugar de sossego e tranquilidade. Os agregados viviam na casa-sede. A patroa cevava mandioca ao lado das empregadas, pano na cabeça, respingos de crueira no rosto. Todas semeavam a tapioca no alguidar, assando o beiju. Quebravam cacau juntas, enlinguiçavam a carne de porco, fofocavam reunidas, na saudável e necessária convivência social. Isso acontecia na formação da fazenda de cacau da região, feita pelo homem que vinha da beirada ou do sertão (sertãozinho sem-vergonha dali mesmo do Jenipapo — linha da estrada de ferro de Nazaré) em procura das matas dadivosas. Todos eram despossuídos de bens. Nivelados, começaram a labuta. Sentiam-se iguais. Eram-no. O fazendeiro viria a ser um deles, um qualquer da leva de chegantes. Todos, contudo da mesma laia: quem não descendia de família da enxada mesmo, vinha da casa — classe média rural — em decadência, mais pobre ainda. Lembro-me de minha mãe na casa de farinha a peneirar massa, tirando goma, bebendo o café coado na boca do forno. Deve ser o mesmo café que ainda hoje saboreia deliciada, decorrido meio século, na casa de Aristina, que continua empregada — as duas sentadinhas na varanda de uma ou de outra. Bons tempos em que uma estava na casa da vizinha na capação do frango, no parto, em qualquer necessidade, trocando o pó de café donzelo, torrado na torradeira (meia lata de gás cortado ao comprido) pisado no pilão, cessado na urupema. Todos os meninos machos eram iguais perante a lei da capoeira, na carrapeta feita de cabecinha do mato, no cavalo de pau, repetição de bananeira brava, no badogue de arco e jenipapeiro, nas traquinices com as fêmeas dos bichos. Do lado do patrão não se modificava muito. Depois apareceram os comerciantes comprando roças, os doutores, os que, meio lanzudos de produção, iam morar na cidade. Aí o estreito relacionamento foi desaparecendo. Surgiu a figura do gerente, mas realista que o rei, posudo. Espingardado na postura. Cresceu a necessidade das leis trabalhistas. Mudaram-se os ares. A propaganda do consumo, esmaga [texto ilegível] o boia-fria. Chegou [texto ilegível] hoje: a guerra. Mas nem tudo está perdido. Vamos, nós proprietários, mais esclarecidos, presumivelmente, tomar consciência dessa indisposição e, com humildade, admitir que só nós temos a perder nessa luta. Os trabalhadores, se nada têm, o que vier é lucro. E que a fazenda vive sem nós, mas não sobreviverá sem quem planta, colhe, seca e carrega o cacau. Logo, eles são a parte mais importante dela.
Primeiro: paguemos os direitos trabalhistas. Não pagamos o açougue, a padaria, a loja, os juros, escorchantes, os supérfluos de casa, por que, então, não pagamos o direito que o macaqueiro tem por lei, por justiça e pelo seu esforço quando cria a nossa riqueza? Vamos nos convencer de uma vez por todas que o capital, a terra, só, os cacaueiros igualmente, nada rendem sem o trabalho.
Segundo: não cuidamos até com carinho dos burros, vacas, cavalos e bezerros quando caem doentes, por que não fazemos o mesmo com o homem que nos garante o conforto? Na entressafra colocamos os cargueiros a descansar no melhor pasto. Alguns mandam os felizardos para a fazenda de pecuária: em melhor clima e saudável estação de água salobra. Por que não reconhecemos o direito do trabalhador às férias?
Terceiro: seria bom que todo cacauicultor, dentro da própria fazenda, destinasse uma área para plantio de comestíveis, sem ficar apavorado com a possibilidade de problemas de posse e indenização de benfeitorias: um simples contrato escrito resolveria qualquer demanda futura. Talvez aí resida a maior causa do boia-fria: sem a rocinha, o agregado deixa de ter qualquer vínculo ou estímulo na fazenda, nela não se fixa, preferindo os falsos encantos das pontas de rua.
Estamos sabendo que fazendeiros começaram a criar peixes, galinhas, coelhos, vacas de leite para melhor alimentar seus trabalhadores. Se quiserem raciocinar pelo lado capitalista puro: o homem bem alimentado produz mais no serviço. Soube que outro, depois de adquirir 150 hectares, está distribuindo 10 para cada família da sua fazenda, onde os assalariados possam plantar cereais, banana, criar uma leiteira e até cultivar cacau e café nos boqueirões mais frescos.
Quarto: devemos diminuir o orgulho, a empáfia, a vaidade ridícula. Não temos brasões de família, nem sequer, conseguimos, ainda, fixar um nome de estirpe: somos uma porção de sousas, silvas, teixeiras, vieiras, nunes. Alguns dos primeiros continuam vivos para dar o atestado. E os filhos e netos de todos devem guardar a sadia lembrança de que devemos ser iguais, praticando, ao menos, a tão propalada democracia liberal da Revolução Francesa: igualdade e fraternidade.