Faca de dois cortes
Euclides Neto
Tribuna da Bahia - Salvador - BA - 1996
Aplaudimos a ideia moralizadora da criação de uma câmara especializada para julgar os crimes praticados por prefeitos e outros gestores públicos.
Conquanto haja uma má vontade doentia contra os prefeitos, como se todos eles fossem simplesmente gatunos, é bom ressaltar as centenas, de todos os partidos, que são idealistas, exercem o cargo para servir à comunidade com alto espírito público. Ademais, ultimamente, não sei se – com as dificuldades financeiras que chegam à miséria, acrescidas da obrigatoriedade de devolver aos cofres federais praticamente o que recebem, em forma de INSS, FGTS, multas, correções etc. – não sei se resta alguma migalha para ser surrupiada. Salvo poucos municípios. Por outro lado, o Estado e a União deixam cada vez mais sobre o lombo magro dos municípios os encargos que não destes: funcionários municipais servindo à justiça, à saúde, à educação; a manutenção da polícia com alimentos, transporte, combustíveis, reparos de viaturas, alojamento; e até com tiro de guerra, etc.
Então, vamos devagar com a procissão.
Evidente que para a Bahia essa câmara especial será de um grande alcance. Sobretudo para peneirar os podres dos bons. Notadamente, também, porque a nossa Justiça (com J maiúsculo!) está infensa de qualquer submissão aos demais poderes, tendo a independência moral, ética, intelectual, reconhecida à saciedade, sem qualquer sombra de dúvida ou até mesmo exceção, jamais se registrando um caso em que o Executivo tenha tido, sequer, a coragem de sonhar em interferir nas decisões do augusto poder.
Não nos compete julgar outros estados. Mas certamente por aí afora, segundo comentam, é comum os prevaricados, os envolvidos em falcatruas, os que lesaram o SUS e colheram urnas coculadas de votos, enfim, os piores correrem para o coito de quem os protege ao custo de adesões eleitorais. Sabem que, aderindo, estarão protegidos, inclusive pela justiça dócil e, no mínimo sujeita à corrupção de comportamento (nomeação de parentes, promoções, julgamentos a pedido) e, em muitos casos, a corrupção propriamente dita: a do dinheiro, mais rara, bem verdade.
A Bahia não corre tal risco. Se o corresse, na hipótese absurda, a faca seria de dois cortes. Aí os malandros, eventualmente na oposição, iriam à enxurrada para os braços de quem os amparasse na Justiça. E os aliados, já certos da impunidade, continuariam contando com as costas gordas.
A Câmara Especial, pois, virá para a moralização.