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Fábula do presidenciável Salém

Euclides Neto

Artigo em “Um prefeito” - Ipiaú - 1983

Uma vez era a eleição para presidente de Araras. Existiam vários aspirantes ao cargo, entre os quais o mais cotado: o do chefe de plantão.

Acontece que Araras vivia consumida pelas xingadas de multinacionais, e as suas finanças andavam em tal insolvência que, durante as tardes, se fuçava empréstimo destinado a liquidar o que ia ao protesto na parte da manhã.

No levante, contudo, uma gente mui rica e ambiciosa carecia de agasalhar a enxúndia lucrativa do seu único produto – o petróleo. Seus moradores não tinham onde plantar comida para encher as tripas; enjoaram dos juros sobre juros dos depósitos bancários e souberam da história de um tal rei Midas que transformava tudo em ouro, pelo que morreu de fome. Botaram, então, a canhota no queixo, pensaram, viraram o queixo para a destra e pariram o estalo. Se aquele país onde se vai eleger presidente vive tão explorado pelas multinacionais, bem que nós podemos tomar conta dele, plantando pistácia e criando merinós para o quibe. Assim, aplicamos os nossos petros, ficamos tranquilos quanto à panela, e não deitamos os ovos numa galinha só.

Começa assim a história do presidenciável de nome Salém. Os levânticos procuraram alguém parecido com um cidadão mui hábil, na idade de pegar peso, bem-sucedido no culto da sagrada iniciativa privada, provado em eleições oblíquas ao inventar a arte de leiloar convencionais em eleições indiretas, adquirindo-os a preço módico, quando o escolheram cacique do seu condado, contrariando todos os donos da democracia do país das Araras.

Nosso herói vinha de útero líbio: olhos pipocados de árabe. Até turbante e túnica se lhe botava ao vê-lo, conquanto sempre pusesse o fato de executivo bem-sucedido.

Sopa no mel.

Aconteceu o convite para o recreio no levante com mordomias não digo brasilianas, mas, pelo menos, de xá antes de Comeine. Houve a conversa franca e amiga. Tudo se acertou.

Sabiam, no país, que o homem era corruptíssimo, e o Serviço Secreto das Araras tinha a vida dele, desde quando subtraiu o bico do companheiro de berçário na Pró-Máter, 53 anos atrás. Já havia pacotes de fichas com a chamada pregressa do dito. O próprio presidente da gurita preferia dormir com o diabo no mesmo leito a ouvir Salém no quarto vizinho. E o pior: todos, mas todos, até os mais ortodoxos do sistema, sabiam que o candidato andava a comprar políticos. E nada podiam fazer. Uma força estranha e oculta – não ocultíssima, evidente – existia. O mal acontecia, uma desgraça trotava nos corredores palacianos. Que medidas tomar? O SSA relatoriava os passos, até os olhares de Salém. Tudo desembocava na corrupção mais safada. Os varões de Plutarco já temiam que fossem envolvidos também, pois resistiriam à simples compra e venda com o cheque, à conta discreta do outro lado do Atlântico, ao iate branco na baía azul, ao apartamento de cobertura. Tinham quase certeza que resistiriam. Mas Salém, cruza de satanás, armava pinguelos, e as vontades, às vezes, de marechal de bronze, caíam na armadilha.

Os orientais remetiam dólares de encher porões de navio inglês. E a ordem: não é por isso. Precisamos ganhar a eleição. Dinheiro não é o caso! Os caminhos andavam fáceis, porque Salém pertencia ao partido do governo, da maioria mansa, ordeira, e os seus correligionários não precisavam violentar a consciência para segui-lo. Se todos os do partido da situação são iguais perante a lei, e têm o direito de votar e ser votados!... Fosse da oposição, bem... Tanto mais um companheiro tão risonho, alegre, tratável, inteligente, memória de computador, tocador de violino, cavalheiro e cavaleiro, ofuscando com as promessas, já realizadas em automóveis, créditos bancários, flores, viagens de turismo...

Os levânticos viam naqueles gastos segura aplicação, visando o futuro: parede-meia com o presente. Houve o caso de dois deputados de extremíssima esquerda, com temporada de guerrilha no currículo, unhas arrancadas no suplício da prisão, que não se venderam a peso de arroba de ouro, mas aceitaram receber metralhadoras de mão – bem verdade que dois caminhões cheios – para movimentar outra guerrilha no Araguaia: os fins justificavam os meios. A dos ministros incorruptíveis, porém ainda magoados com recentes disputas entre os irmãos de armas, entregou dois porta-aviões: um à força aérea; outro à gloriosa marinha ararense, conquanto o país não dispusesse de uma braça de mar e as navebelas tivessem de alugar ancoradouro vizinho.

Certo deputado do colégio eleitoral pretendia organizar o lucrativo serviço de segurança da propriedade privada. Faltava capital, no entanto. Não é por isso! Recursos não faltariam a tão nobre empresa. Só falar com Salém, que trouxe até gente especializada do exterior para ministrar cursos. O SSPP cresceu tanto que em todos os emirados (para a nova entidade os estados passaram a ser designados assim) criou-se uma filial. Milhares de homens baixaram a porcentagem do desemprego. Mulheres também, inclusive as tentadoras, das quais iremos falar mais na volta do caminho. Certo que nem todos os funcionários seriam usados, exatamente, no cumprimento dos estatutos da sociedade: a filosofia desta passou a ser a de colocar o maior número possível de assalariados ao dispor dos bancos, supermercados, lojas, mansões e até fazendas (muito invadidas por lavradores sem terra ). A SSPP mantinha amplos quadros destinados a agasalhar advogados, médicos, professores, homens d’armas sofrendo da síndrome dos aposentados (doença que estiolava muita valentia), engenheiros, economistas, gente que interessava aos convencionais, ou eles próprios, sem olhar profissão. Seriam assessores do serviço de segurança da propriedade privada, organização protegida na lei das companhias limitadas. A tropa especializou-se de tal modo que não se chamava de elite para não ferir brios constitucionais. Cresceu muito, parindo pequeninos departamentos com outros apelidos, mas empencados no mesmo bagunço. Passou medalhas e comendas nas datas festivas do país das Araras. Se fosse levantar o efetivo de todas as corporações, daria para competir com as forças regulares. É que os árabes perceberam logo a vantagem da corporação: após a vitória de Salém, teriam um troço aguerrido, mais e mais dócil e versátil. Salém apaixonou-se tanto pela SSPP que terminou seu presidente de honra, e levava já um plano ao eleger-se: criar a tropa regular da salvação da propriedade privada – a TRSPP. Só com a ajuda e o aprimoramento da SSPP o nosso presidenciável abiscoitou 186 sufrágios absolutamente certos na assembleia eleitoral.

Outro maníaco criador de cavalos, graúdo no SSA, recebeu haras, instalado, à inglesa, com doze éguas e dois reprodutores, importados, da mesma padronagem: tordilhos, vindos de Wazir Ibn Morafic e Ta Blanca. O senador Francisco Souto, criador de cabras no nordeste, homem que não se deixava negociar, teve a proposta, que aceitou, para adquirir a preço de titica um capril povoado com cinquenta saanens, inclusive seis vindas da Austrália com média de lactação de seis quilos durante 305 dias. Tudo a três quilômetros da casa do político, na capital, dando oportunidade a ele de fazer o cúper antes do café da manhã.

E as promessas de cargos! Nossa! Quarenta ministérios estavam sendo prometidos. Muitas presidências do Banco das Araras. Outra penca do Banco do Centro. Tudo sob o maior sigilo, a fim de não gerar ciúme entre uns e outros. O próprio gênio de Salém em criação. As regiões militares foram multiplicadas por cissiparidade, e em cada uma já prelibava o nomeado.

Não faltou, inclusive, o milenar argumento de mulher bonita, especializada no envolver recalcitrantes em favor de Salém. Algumas mulatas, louras, castanhas, ruivas, pretas retintas, jabuticaba, norraurizadas 1em todas as artes e artimanhas, soltas nas imediações do palácio das Cuias, hospedadas que estavam nos hotéis onde ficariam os convencionais.

Os mais austeros sabiam de tudo e procuravam esconder os desejos mais ardentes da vida, temendo que o turco descobrisse e viesse com seus ardis irresistíveis.

Alguns indecisos já receavam perder as vantagens que o homem distribuía. Aderiram, com a desculpa de não ser covardes, para ficar no muro. Aderiram porque, se o homem é do mesmo partido, não viam razão para a resistência.

Sobraram uns raros, que não enchiam os dedos da mão. Estes não se venderam. Sabia-se, contudo, que o primeiro-ministro, moral de pedra, não seria levado pelas blandícias de Salém. E dependia dele, responsável pela coordenação partidária, apresentar os nomes que subiriam à convenção. A assessoria de alto nível reuniu-se para encontrar a saída. O dilema agasalhava-se em que, se Salém se candidatasse com qualquer outro, da preferência da cúpula, ganharia com mais de dois corpos. Não era ele o mago de tais situações, vitorioso em todas elas, brincando de resultados, às vezes empatados para dar a ideia cautelosa da sua força, mas que, se os seus eleitores de ambos os lados votassem em quem ele mandasse, o resto não daria uma isca? Mesmo assim, sem usar toda a potência dos seus motores...

Se o deixassem livre, a bater-se com quantos sonhavam com cargo, nem precisava alguém preocupar-se.

Frigiram o cerebelo na fórmula salvadora das aparências, e afastariam o montador de camelos da jogada!

Veio o deslinde da dificuldade: o partido só levaria à convenção um único candidato, já que a outra ideia seria inócua. É que alguém sugeriu que o voto não fosse secreto, obrigando, assim, os convencionais a se denunciarem na presença do primeiro-ministro. Em tempo, um precavido advertiu: E quem pode garantir que os convencionais, ante as vantagens oferecidas, não encontrem coragem para divergir? Após tal argumento, formou-se a tese: candidato único, qualquer um, menos o otomano. Os meios de comunicação bradaram no quente da decisão: o partido, em consenso admirável, reuniu todas as lideranças num só candidato! Ao primeiro-ministro, juntando todas as tendências partidárias, cabe a apresentação do nome do vindouro chefe da pátria estremecida. Porém o nome só será apresentado, evitando explorações, no próximo mês. Adiantamos que os elegíveis pelo semblante traçado será aquele que, portando dotes (como se precisava dizer isso!), não tenha nem uma plaqueta de gente da terra das tâmaras. Pouco importa a camaradagem pessoal ou mesmo a preferência do atual primeiro-ministro. A eleição, secreta. Pelo tipo traçado, qualquer trombadinha de certa idade poderia aspirar ao cargo supremo, menos o nosso Salém. Justamente devido a isso é que ele se recolheu, frustrado, a sua casa de rabo de semana, lá na serra: as têmporas funcionavam de tal maneira que se lhe ouvia o matraquear das meninges em trabalho de cremalheira. Perderia aquela, depois de tantos cálculos: 904 cabeças de convencionais a 100 mil dólares, mais o preço do ministro recalcitrante, que explicou não ver nenhuma vantagem na proposta, pois em uma só obra ganhou duas vezes mais. Ainda bem que gente mais pé-duro justifica o princípio: cada um tem seu preço. De qualquer modo, a despesona arregalou os longos cílios dos levantinos, sangrado nas suas burras, tudo viajando corrente abaixo. Deram-lhes o golpe: um só candidato, e este, óbvio, não seria Salém... buscando agora nos acordes da IX de um cidadão chamado Beethoven a solução: não mais para a presidência, porém uma desculpa honrosa aos financiadores da terra das pistácias. Esbarrara no impasse: o coordenador de tudo era incorruptível, dessem a ele dois poços de petróleo no quintal, funcionando dia e noite, e não conseguiriam nada. Mandassem a conta mais rechonchuda à Suíça, parindo ôpenes2 de varejeira! Ora, ora, quando ele dizia que arrebentava, arrebentava mesmo. Amassava com as patas do seu ginete as fuças do ousado que lhe mostrasse, significativamente, o talão de cheques. Fazendas, veleiros, prédios, viagens, para quem saía do cargo maior coberto de louros e ouros para mergulhar no fofo da história?! Bagatela! Salém topava o impossível. Sentia, no entanto, que na floresta política, há pau que passa pau.

Veio a ideia: soltar os agentes – que só podiam ser os do serviço secreto de Araras, pois já eram seus, para descobrir com que, realmente, vidrava o supremo magistrado: pássaros, animais silvestres, cavalos, caçada, pescaria... Qual seria a chave da vontade dele? Conseguira apoio dos mais estranhos: um deputado católico contenta-se com duas capelas na sua cidade natal; um médico recebera modesto hospital no nordeste; o psiquiatra lacaniano conformara-se com a tradução e publicação das obras do mestre. O empresário de Salém ainda conseguiu que o produto ficasse para a caixinha, e a distribuição e a vendagem dos livros foram de nível tão empresarial que deu lucro imprevisível; um bicheiro satisfez-se com dois motéis, com lucros divididos, bem verdade; o literato de qualidade, mais pra cá do que pra lá, teve a eleição à Academia Ararense e a tradução dos livros em francês; o farmacêutico alegrou-se com as duas farmácias, também de lucros meados; 22 tabelionatos, custas rachadas, igualmente; o vendedor de caixões de defunto teve seu simpático comércio ampliado, Salém participando. Já constituía uma honra ser o sócio do futuro presidente. Um doente extraiu o rim no hospital da Alemanha. O criador de jersey teve dois touros e dez matrizes trazidos de avião da ilha de origem. O da fronteira, com três barcos no tráfego do pó milagroso e um Cessna, chegou a conseguir mais dois votos; na zona do teobroma, arranjaram adepto com o mínimo, mas produtiva fazenda. No sul, foi de gado e soja. No norte, babaçu e seringa. Salém nas cotas-partes. Não queria um níquel dos patrícios, tudo estaria religiosamente – por Alá! – empregado na campanha. Se a participação nos negócios apareceu, foi ideia dos assessores. Ele, Salém, não punha as mãos nas transações. E nem tudo dava lucro. Aquele correligionário metido a protetor de índio quis três viaturas e ferramentas para distribuir aos silvícolas. Gente até que recebeu construção e montagem de hospital, fitando atender gente das beiras de ruas. Um museu em incipiente cidade interiorana liquidou a fatura de voto valioso.

Tudo bem.

Mas a dificuldade morava no coração de quem decidiria o modo como se escolheria o presidente.

Depois de duas semanas de intenso investigar, encharcando camisa e rastejando a trilha do cidadão, por duas inaugurações, veio o relatório, tão sigiloso que teve de ser verbal:

Mulata!

Todavia, tal espécime não faltava no harém em forma de secretárias e assistentes, colhidas a dedo, olhos de folha de agrião, ancas de mestiças, seios pontudos, médios, chatos, robustos, avantajados, do tamanho de uma pitanga, pernas de galpa, baixotas, gorduchinhas. E que, de acordo com os problemas da dívida externa ou das investidas dos comunistas, a preferência variava. Assim, durante as dificuldades internacionais, o bicho procurava magrelas esguias, olhos de azeitona esmeraldada. Quando a aporrinhação vinha das entranhas do país das Araras, de algum deputado dissidente, a preferência voltava-se para as baixotas, mais queimadas de couro, olhos tirados à tapuia. Daí a necessidade de ter à mão espécime para qualquer eventualidade.

Portanto, aquela não seria a chave. O homem punha e dispunha do que imaginasse na hora que entendesse, quando veio a notícia ainda mais desalentadora: enjoou de mulher, de qualquer pelagem, muda ou formação. Pronto. Os entendidos no assunto alteraram o cardápio, enfeitaram o acepipe de toda forma, e ele indiferente, pretextando falta de tempo, motivação, dificuldades assoberbadoras.

O maioral, inabordável. Chegara ao cume da carreira. Se não possuía fortuna, não podia dizer-se pobre. Bens materiais também nunca foram o seu fraco. Daí vários erros de cálculos dos adeptos salenianos: achava que todo bichinho se levava na base do cheque. Descobriram, espantados, o equívoco. Uns nem ligavam para dinheiro. Outros, se não eram inteiramente indiferentes, resistiam a qualquer vantagem desse tipo. A descoberta chegou a tal ponto que tiveram de catalogar os convencionais pelo fraco de cada um: dinheiro, sim, muitos; posição, bastante; fama, menos, mas um punhado bom. Havia até os filantropos. Foi aí que sociólogos, psicanalistas e outros ólogos e listas entraram na consulta e botaram o ovo de Colombo na posição vertical: isolaram os gostosões! Jamais descobririam a chave do homem se não fosse o concurso eficiente dos escafandristas da alma humana. Depois de pesquisar atitudes, de estudar à luz de Lacan todos os preconceitos, gestos, corte e penteado de cabelo, andar, sorriso de Mona Lisa depois do banho, chegando a examinar as pancadinhas após o pipi ministerial, deram no nervo dele. Sem falar no discurso, na construção bem ensarilhada das palavras. Restaria a tentativa de motivá-lo pelo lado do gostosão.

Entregaram a Salém a grande verdade. Salém reuniu outro grupo de trabalho, inclusive uma fieira de Ph.D. em parapsicologia, psiquiatras e macumbeiros, e pensou em um congresso de especialistas, até que uma noite, já na banda da madrugada, borbulhou o gênio: aquilo daria certo. Tudo ou nada. Falharam conta na Suíça, carros importados, que ele não gostava de cavalos, eleição segura à Academia Ararense de Letras. Cargo, se ele já pinoteara no maior?! Alguém chegou a articular a prorrogação do mandato, mas recusou a tempo de perceber que não resolvia o intento de Salém. Ora, vejam a idiotice: prorrogar o mandato e o felizardo continuar no cargo!

A ideia era tão simples que Salém duvidou. Confiou, todavia, no instinto do seu gênio, nos imponderáveis das entranhas humanas, naquilo que não se explica por palavras e números, mas em que se percebe o caminho a seguir: o chamado instinto de roedor.

O homem carregava mania de gostosão, afirmavam os entendidos. Ali residia a chave.

Dias depois, o próprio chefe do SSA entregava ao primeiro-ministro carta supersecreta, encontrada ao acaso.

Dentro vinha a dedicatória amorosa de alguma Sabrina enlouquecida pelo seu homem: viril, olhar de comando supremo, porte de poldro na muda do dente de leite, palavra de fogo, língua incandescente, varão de verga inesquecível. A paixão incendiada.

Uma coisa era bater o dedo e escolher: tragam aquela. Por mais que esta aquela se esforçasse nos desígnios da função, sempre restavam dúvida, o faço da violentação, da vontade lambuzada de azinhavre. Uma, entre muitas, falava em detalhes, aquela única noite sem esquecimento. Daquele dia para cá, nem o noivo, o hoje marido há um mês, satisfazia. Do que adiantavam os 25 anos do esposo, se na hora da onça beber água aparecia o troço sem ânimo! Um frouxo. Naquela véspera, vira-o no carro aberto, garboso, músculos nos braços e do peito pulados. Lembrou-se da única noite deliciosa, menos de duas horas, mas que se tornaram únicas na sua existência de menina, já nos calores dos vinte anos. Nenhum outro homem existia. Nada pretendia em troca. Escrava, viveria a seus pés. Perdoasse. Era querer demais. O amor, no entanto, não respeita monarquias, é cego e louco. Beira o suicídio.

Por aí afora andou a tresloucada amante. O romantismo amoroso sobrevive em todo homem, notadamente em volta dos vinte anos e após os sessenta.

Lida a missiva, os brios do varão empinaram-se. Malícia não existia no gostosão. Tudo nele é crença. Por que não? Assim como botara 220 no seu carro envenenado, contrariando as recomendações da segurança particular, por que não seria ele capaz de endoidar o viço daqueles vinte anos, olhos de alga marinha, pernas de alicate macio, ardiqueza de diaba no cio?

Inquietou-se na espichada noite, esponja que absorveu as preocupações dos ingentes dramas das Araras, à beira do abismo que vinha sendo cavado há século.

Dois dias após, outra carta. Novos desatinos. Sentia, a apaixonada, algo instintivo da fêmea, que ele não fizera com ela do mesmo modo que com as outras. Repetira a palavra “fêmea”, “femeazinha...”, com as reticências enlouquecedoras. Algo mais acontecera naquele dia. Daí a suprema ousadia: o telefonema. Estava, sim, na capital. Viera naquela tarde. Recusada, amor impossível; ao menos ficaria próximo ao seu grande, único e verdadeiro amor. A originalidade da afirmativa, colhida no manual de cartas amorosas, mexeu nos últimos tendões do ancião. E ei-lo, ao telefone, sôfrego, no que só ele usava, discagem pessoal, sem interferência do SSA.

Tudo combinado.

Foi assim que a democracia ararense ganhou mais três candidatos à convenção. O que estava certo e outros, inclusive o nosso herói Salém. Mais democrático, assim. poderia ocorrer livre escolha, dando oportunidade para outra corrente partidária optar, sem constrangimento.

Assim, aquilo que os mais habilidosos não conseguiram diretamente, bastou o encanto mulato em três tardes, bem verdade que não consecutivas, para resolver. A rigor: uma tarde, pois só na última ela pediu que ele falasse das suas preocupações. E uma delas repousava exatamente na indicação do preferido do governo. E ela, treinada em todas as artes, colocando a ponta do seu arrebitado nariz no já machucado dele, deu a solução milagrosa.

– Em vez de um, quatro. Com prestígio não tem nem graça que o seu candidato será o escolhido. Vitória retumbante da sua força, meu bem!

E mais uma vez a vereda dos povos se traçou na mancha deixada nos lençóis.

O primeiro-ministro permitiu vários candidatos, só pela satisfação de mostrar à amada a vitória sobre o beduíno.

As rodas políticas, contudo, chegaram a pragmática conclusão: os outros candidatos são corruptos. Talvez Salém não o seja: é homem que não tem mais conta bancária onde botar os filhotes de ações, juros por dentro, por fora, por cima, por baixo, por-dentro; dólares adormecidos na pátria de origem; marcos que não apreciavam nacionalizar-se; ienes de olhos semicerrados, até ouro em barra que servia de fiança para o montão de recursos vindos das plagas do Alcorão. Talvez... talvez... A certeza de que os demais eram corruptos e a dúvida de que Salém talvez... Mas isso não importava muito, no país das Araras.

Porém, íamos dizendo que veio a convenção, cartazes, vivô... ô... ôs, sentenças de fino sabor político. Composta a mesa presidenta dos trabalhos. O primeiro-ministro adoeceu. Não pôde comparecer ou teve outro encontro mais ameno. As rádios, televisões, vozes de bisonhos interiores assanhadas no trabalho de cobrir o acontecimento. Tudo lubrificado pelo óleo do Oriente.

Alguém propôs no espoucar do entusiasmo:

– Não precisa votação, o momento histórico exige o consenso da aclamação. Vamos a ela!

– Muito bem. Muito bem.

– Salém será aclamado. Quem estiver de acordo permaneça sentado!

– Não, todos de pé!

Partiram-se vidros e cristais, romperam-se os véus do templo da democracia. Foi um ribombar de vozes e uivos pela estrondosa vitória.

Do lado de fora, alguém, despeitado, correu aos quartéis:

– Salém não pode ser o presidente do país! Vamos às ruas!

Veio a resposta:

– Eleição é eleição. Respeitemos a vontade livre e consciente do povo.

Alguns gatos-pingados não votaram em Salém. Um porque morreu de enfarte na véspera, arrependido de não ter aceito gordo valor que lhe resolveria muitos dramas, inclusive a quitação do apartamento a pique de ser deglutido pela Caixa Nacional da Moradia. Outro tomou um porre federal na véspera; eis que viera de longínquas matas e afogara-se no mel da orgia, tendo o sono o derrubado na casa de alguém que não se pode trazer a lume. Bem, não chegaram a dez os não votantes, todos em situação de força maior, como descrito.

Moral:

Salém governou muitos e muitos anos. Houve prole numerosa que, à moda do país das Araras, levou a dinastia a tempos e tempos sem conta, revolucionando costumes, sistema de governo. A língua árabe passou a ser obrigatória nas escolas, inglês nem ver; as mulheres continuavam a usar minúsculos biquínis nas piscinas, mas com o rosto coberto como no Oriente. Podia-se ser católico ou protestante, mas a religião oficial era a muçulmana. O Alcorão fazia parte do currículo escolar. Bolsa de Nova Iorque ou Londres? Nada disso. Ouvia-se o pregão de Riad ou do Kuwait.

Viva a revolução dos Saléns!!!


Ipiaú, 14 de agosto de 1983

1- Com know-how.

2- Plural de open do mercado financeiro

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).