Euclides Neto admite disputar se houver consenso das esquerdas
Euclides Neto
A TARDE - Salvador - BA - 1990
A preocupação constante com o aspecto social, a população carente, só admitindo a modernização se esta vier devidamente justificada por resultados que signifiquem benefícios para a grande massa socialmente carente. A reforma como um “vício” e a relação trabalhador rural e patrão fornecendo inspiração para a literatura. Estas são as bandeiras defendidas pelo ex-secretário da Reforma Agrária e ex-prefeito do município de Ipiaú, Euclides Neto, que hoje é um nome apontado por partidos de esquerda como um dos poucos que, se candidato ao governo do estado, tem condições de unir todas as legendas numa grande frente de esquerda, obtendo o tão desejado consenso.
Aos 64 anos de idade, autor de nove romances desenvolvidos a partir de sua experiência de relações entre trabalhadores rurais, posseiros, grileiros e patrões, Euclides Neto por 40 anos se dedicou, como advogado, à defesa destes trabalhadores. No período em que foi prefeito de Ipiaú – de 1963 a 1967 –, colocou em prática os princípios que defendia. Criou a Fazenda do Povo com estábulos, plantações coletivas e assentou 60 famílias. Depois, “viciado” na causa da Reforma Agrária, adquiriu uma área de 150 hectares, há cerca de 8 anos, para dar continuidade ao trabalho em que acreditava e promoveu o assentamento de famílias, produção coletiva, compreendendo que produtividade só tem sentido se for voltada para o aspecto social.
Nascido em Vila Jenipapo, no município de Ubaíra, Euclides Neto mudou-se, aos dois anos de idade, para Ibirataia, quando seus pais decidiram fugir da seca e da recessão com seu único filho à época. De Ibirataia, saiu para estudar em Salvador, foi colega de turma de Waldir Pires, Clériston Andrade e outros. Voltou depois para Ipiaú, onde se casou com Angélia Teixeira, “a moça mais bonita que já vi em minha vida”, conforme ele a classifica e de quem diz sentir saudade até hoje, se ficam algum tempo sem se verem. Pai de cinco filhos, Euclides Neto assegura que seus planos jamais incluíram a disputa de eleições desde que deixou a prefeitura de Ipiaú. Agora, seu nome surge como um dos candidatos a candidato do governo do estado. Em entrevista exclusiva a A TARDE, ele fala sobre sua trajetória, seus princípios, sua vida e sua candidatura.
P – Quando teve início seu envolvimento com a atividade política?
Euclides Neto – Na realidade, eu sou político desde estudante. Agora, fui prefeito da minha cidade, Ipiaú, pelo Partido Democrata Cristão (PDC), no período de 1963 a 1967 quando, por julgamento do governo federal, Ipiaú foi escolhido o município modelo do Brasil. Isto, em decorrência de trabalhos realizados nas áreas rural, de saúde, educação e na organização da comunidade, quando ela foi capaz de resolver os problemas do município com recursos do próprio alho. Assim é que, naquela época, nós fizemos todas as reformas que eram discutidas no governo do presidente João Goulart.
P – E como foi possível realizar reformas de um governo deposto pelo golpe militar exatamente no ano em que o golpe se deu e nos três subsequentes?
Euclides Neto – Aí entra uma outra história. Foram três anos respondendo processos: desde os primeiros dias de abril de 1964. Mas os vereadores de todos os partidos me apoiaram e, dois anos depois, não havia quem achasse que eu não estava correto. Fizemos todas as reformas desejadas por João Goulart. Fizemos a reforma urbana quando a prefeitura comprava ou desapropriava áreas e vendia aos trabalhadores lotes pelo preço de uma semana de trabalho.
P – Que tipo de áreas eram estas e como reagiam seus proprietários naquela época em que este tipo de reforma era alvo de sérios preconceitos?
Euclides Neto – Eram áreas rurais e situadas no perímetro urbano, sempre próximas da cidade. Até hoje, os proprietários reagem. Os lotes, ainda que vizinhos, passaram a ter valor diferenciado. Este dependia do salário: se era uma Iavadeira, ajudante de pedreiro ou trabalhador rural. Foi a maneira que encontramos para dar condições para que todos adquirissem um lote. O resultado disso foi que houve uma multiplicação grande também do trabalho. Então, isso foi importante também para definir quanto a pessoa podia pagar e se podia nivelar custo de necessidades básicas. Tudo de acordo com as posses do adquirente. O parâmetro que nós tínhamos era uma semana de trabalho. Quando a pessoa não tinha trabalho, a prefeitura dava: completado um mês de trabalho era descontada uma semana. É um projeto que se pode fazer na cidade porque fazendo isso, o custo sai de tal modo barato que viabiliza qualquer homem. Quando a empresa compra uma área, faz os melhoramentos e loteia, são agregados custos tais que, aí sim, inviabilizam qualquer projeto de existência habitacional. A prioridade da vida humana é alimentação e morada. Então, a morada tem de ser subsidiada. Não pode ser uma coisa vista como se estivesse em quinta ou sexta prioridade para ninguém. Por isso nós fizemos este projeto na área urbana.
P – E as outras reformas realizadas?
Euclides Neto – Fizemos a reforma fiscal. Nos isentamos 60% dos que pagavam impostos e com os 40% restantes nos decuplicamos a renda do município. Como era feita? Dando benefício. Fazendeiro, àquela época pagava imposto rural a prefeitura. Se ele morava na fazenda, tinha 20% de abatimento. Se ele conseguia terra para o trabalhador dele fazer roça, tinha mais 20%. Se os filhos moravam na fazenda, cada filho representava abatimento de 1%. Então, alguns chegavam à isenção mesmo que fossem fazendeiros médios ou grandes. Em compensação, àqueles que não moravam no município nem moravam na fazenda, passavam a pagar alíquotas diferenciadas, pesando sobre o valor. Essa reforma fiscal deu neste benefício. Outra foi a reforma bancária. Essa foi a mais difícil, porque geralmente os depósitos no interior, todos eles são evadidos para outras áreas ou vão para São Paulo ou para outros grandes centros. É um processo de sucção de recursos. No momento em que a prefeitura organiza uma cooperativa de crédito e começa a depositar seus recursos na cooperativa de crédito local, ao chegar o fim do ano todas estas vantagens são espalhadas e divididas entre a própria comunidade. Então esse dinheiro passa a rolar no próprio município. Com a cooperativa de crédito municipal, os recursos que iam ser depositados, naquela época, no Banco da Bahia, e seriam trazidos para Salvador ficavam lá.
P – Houve ainda a reforma agrária...
Euclides Neto – A prefeitura desapropriou uma área e a distribuiu, pensando em resolver três problemas básicos. Um era a merenda escolar, isto é, plantar aquilo que a merenda escolar consumia. Outro, era tentar modificar a monocultura regional, uma vez que, na área do município, só se plantava cacau. Então, nesta área – a Fazenda do Povo – era proibido plantar cacau. Só se admitia hortigranjeiros ou qualquer outra cultura, menos cacau, a fim de criar uma ideia de que outras culturas eram também viáveis economicamente. E, em terceiro lugar, havia a preocupação de multiplicar o trabalho. O regime ideal, no meu entender, qualquer que seja o seu nome, é aquele que pode dar trabalho a todo mundo, seja operário, médico, engenheiro ou jornalista porque, para mim, o trabalho resolve uma gama de dificuldades. Por exemplo em relação à saúde: o indivíduo se alimenta melhor e tem melhores condições de se tratar. Também resolve o problema da morada porque pode consertar a casa e comprar sua casa ou fazer sua casa. Além disso tudo, o trabalho tem um efeito psicológico importantíssimo que é o próprio lado a satisfação pessoal. O cidadão que trabalha está resolvido emocionalmente. Nós tínhamos a preocupação de dar trabalho a todos e começamos a ter atitudes do seguinte tipo – telha de amianto. Ninguém usaria telha de amianto porque o dinheiro desta telha iria para São Paulo enquanto que se usássemos a telha de barro, ela seria feita por aqueles que iriam cavar para encontrar o barro e por quem iria amassar o barro. Na agricultura, fazer aquilo que mais multiplicasse a mão de obra como, por exemplo, a hortigranjeira que, numa área de cinco hectares, trabalham 125 mulheres abandonadas pelo marido ou viúvas, porque por trás de cada uma destas mulheres, na maioria das vezes, há duas a três crianças. E a melhor escola para a criança ainda é a mãe. Por isso essa preocupação com o trabalho. A pequena estrada vicinal de um município não se tem pressa para fazê-la. O tempo não conta tanto. Então para que fazê-la com um trator se este vai ter o próprio investimento do trator e se as pessoas sabem fazer estrada a braço. Se o trator vai roubar o trabalho de 100 homens que significam 100 famílias, isto é, quase 500 pessoas. Se se coloca um tratorista em cima de um trator, gastando óleo, peça de reposição, trabalhando e fazendo estrada, ficam 100 pessoas paradas. Evidente que, se há o problema de pressa, de tempo, e se há um programa de obra pesada, aí entra a máquina. Mas não como uma praxe. Então, na Secretaria de Reforma Agrária era muito comum isso. Ao invés de se cavar a aguada, o açude com o trator, se empregava ali 200 pessoas, 400 e até 500 porque essas pessoas estão sem trabalho. Se se manda um trator para fazer isso, o tratorista chega na área, trabalha e esse povo fica parado. Depois, o tratorista pega o dinheirinho lá e carrega para cá.
P – Isso não significaria uma posição excessivamente social que se choca com o processo de desenvolvimento?
Euclides Neto – É preciso ter coragem para resistir a essa coisa que, hoje, se chama modernização. Um exemplo disso é o que aconteceu no Paraná. Lá, era um estado que fazia uma agricultura mais ou menos tradicional e que produzia – creio que não tanto quanto após a mecanização – mas quando a mecanização chegou até lá, desempregou um milhão e duzentas pessoas. Estas pessoas todas foram para a periferia das cidades ou outros lugares: despovoou o Paraná. O Paraná enriqueceu, mas adiantou a quem? A produtividade tem que funcionar não no sentido da produtividade econômica, mas no sentido da produtividade social. O trabalho tem de ser feito na medida que representa alguma coisa de útil para uma parte maior que vamos chamar de povão. Não sou contra grande fábrica de alumínio. Não sou contra, por exemplo, a Tibrás ou uma grande fábrica de celulose. Vamos trazer essas fábricas todas para a Bahia. Agora, antes de vir, vamos perguntar até onde esta fábrica vai servir ao povão. Aí, no meu conceito, povão é aquele que vive de salário e não paga salário. É a grande massa, 70% da sociedade marginalizada. Povão é aquele cidadão, aquela família para os quais o Estado tem de estar montado porque precisam do Estado. Então, tudo isto, esta modernidade tem de ser vista em função do que pode resolver em nível social.
P – Tudo dependeria, então, do produto final da modernização ser, de fato, analisados todos os aspectos, um benefício para a sociedade e não atender apenas a uma minoria?
Euclides Neto – Correto. Suponhamos que vamos instalar uma fábrica de celulose que irá render um milhão de cruzados novos em impostos e gerará 100 empregos. Ora, isto tem de ser visto se aquela área vai, ao invés de gerar 100 empregos, se aplicada em outra atividade não poderá gerar 200 empregos. E, se ao invés de produzir celulose, que é para exportação, se pode produzir alimentos para o povo porque nenhum país se desenvolve só exportando. Afinal, há uma massa de consumo. Depois, verificar também – e isso é uma questão mais de ordem filosófica – até onde essa coisa vai contribuir para prejudicar o meio ambiente. Quem administra tem de usar no seu carro dois faróis. Um baixo, para ver a fome, o teto e resolver hoje, agora. Os faróis altos porque nós não temos o direito de destruir aquilo que nos vamos legar aos filhos, aos netos. Temos de pensar. Nenhum país do mundo, por exemplo, quer indústria de alumínio porque consome muita energia e o resultado é pouco. Então, mandam para o Brasil. É o caso da Tibrás. Tudo isso tem de ser muito contrabalançado.
P – O que o senhor defende, então, nada mais é do que uma modernização responsável e não aquela realizada a qualquer custo, sem análise de todos os seus aspectos?
Euclides Neto – É isto. Outro ponto de vista, para mim importantíssimo, é a ideia de que ou se espera essa modernização ou não se começa o trabalho. Então, as pessoas tem pudor de iniciar um trabalho modesto ou de proteger o trabalho que já está sendo feito. Educação, na Bahia, temos a Escola Parque. É uma maravilha, mas como experiência. Do ponto de vista factível, real, deve ser feito uma para observar, enquanto por aí temos 20 mil professoras leigas. É a realidade. O problema da saúde: se concebe um grande hospital em termos de tecnologia, mas, enquanto não se puder fazer esta grande coisa, pelo menos que se coloque um médico nos municípios onde não há nenhum. A Bahia tem 50 a 60 municípios sem um médico. Tem de haver praticidade no Estado. Planejamento dentro de uma coisa factual, concreta. O cerne é até onde a modernização beneficia a grande massa carente socialmente. Essa é que é a tônica. Todas estas reformas, fiscal, bancária, urbana, agrária, são reformas básicas. João Goulart caiu por causa disso.
P – Como surgiu sua candidatura a prefeito?
Euclides Neto – Foi a partir da própria atividade como advogado. Advoguei por 40 anos e nunca para bancos, firmas ou exportadores de cacau. Sempre defendi trabalhadores rurais. Na Faculdade, em Salvador, fui do partido comunista. Estudei com Waldir Pires, Joir Brasileiro, Clériston Andrade, Fernando Wilson Magalhães, depois, retornei a Ipiaú e minha candidatura surgiu em decorrência desta atividade junto ao trabalhador rural, e foi pelo PDC porque UDN e PSD não me deram a legenda. Defendiam jogo do bicho ou estavam interessados em delegacias. Fui prefeito aos 38 anos de idade. Depois eu vim, no governo Waldir Pires, fazer a reforma agrária. Aí, quando saí, muitos me perguntaram se eu fiz alguma coisa. Alguns dizem que não fiz nada. Olha, a única maneira que tenho para responder e que é a secretaria mais modesta, de menos peso político, de onde nunca poderia se imaginar que o secretário pudesse vir a ser candidato a governador. Alguma coisa aconteceu, porque uma secretaria que não é como a de Justiça que tinha a coordenação política e, portanto, todos os instrumentos na mão. Ou como a de Educação. Era uma das secretarias mais modestas, mais escondidas, onde havia sempre trabalhador, gente chorando, conflito de terra, deputados contrariados. Então, sai dali alguém que pode ser considerado um candidato natural. Não digo que fiz mais do que ninguém ou que se fez muito pouco. E evidente que não cheguei a fazer tudo que gostaria de ter feito.
P – Ainda assim o senhor considera que seu trabalho à frente da secretaria de Reforma Agrária ganhou destaque e se tornou decisivo para que sua candidatura viesse a ser cogitada?
Euclides Neto – Assentamos 10 mil famílias pelo que se chama reforma agrária institucional, mas o grande trabalho da reforma agrária ocorreu a partir do momento em que nós fixamos o conceito de terras, o conceito de abandono de terras, de invasão. A ideia que se tem é de que só pessoas pobres invadem, mas se se fizer um gráfico na Bahia se vai verificar que os ricos é que invadiram terras. No interior, isso assume proporções terríveis. O caso de abandono de terras. A Constituição diz que você tem direito à propriedade, mas no outro artigo está lá: contanto que tenha função social. Então, se não tem função social, o Estado, o poder estabelecido, não pode defender esse cidadão. Uma série de conceitos nós fixamos através daquela secretaria. Minha candidatura surgiu de fora para dentro. Não seria eu o candidato de Waldir Pires ao governo do Estado.
P – Isto significa alguma modificação no seu comportamento até agora, mostrando-se menos relutante em relação à candidatura. Já aceita ser candidato e não apenas eleitor de Pedral Sampaio, como se declarava insistentemente, antes?
Euclides Neto – Se meu nome servir para unir as esquerdas, estou à disposição. Admito ser candidato; mas não concorrerei em hipótese alguma com Pedral Sampaio. Se não conseguir unir as esquerdas, não serei candidato. Não disputarei nada. Não sou candidato a deputado ou qualquer outra coisa.
P – Se o senhor é o candidato de Waldir Pires, ainda que de fora para dentro, por que não se filiou ao PDT como os demais waldiristas, já que também se desligou do PMDB?
Euclides Neto – Por enquanto, estou no partido da Frente. Como há possibilidade de ser candidato, tenho de fazer o possível para viabilizar essa candidatura. Todos estão preocupados coma unidade da esquerda. A questão deste ou daquele partido passa a ser secundária. Se fizermos o que aconteceu no segundo turno das eleições presidenciais, a esquerda terá todas as condições de ganhar. Por enquanto, todo mundo diverge, discute. Isso só não acontece na direita, onde não há integração. Só a unidade justificará minha candidatura.