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Entrevista à Revista OPS

Euclides Neto

Revista OPS - Salvador - BA - 2002

 

“A reforma agrária é a maneira mais fácil e barata de gerar empregos. Enquanto um emprego na grande indústria da cidade custa cem mil dólares, o assentamento de uma família no campo custa apenas dez mil, desde que sem corrupção.”

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              Euclides José Teixeira Neto

 

                Atualmente, fala-se muito em descentralização; mais especificamente, em municipalização das políticas públicas. A Constituinte de 1988 foi muito clara a esse respeito. Todavia, sabe-se que, diante da diversidade dos problemas e das dimensões continentais do Brasil, pouco ou quase nada pode ser feito diretamente de Brasília. A solução poderá estar nas prefeituras de cada município do interior do país, desde que bem administradas.

                Euclides José TEIXEIRA NETO é uma dessas pessoas que têm o poder de antecipar o futuro. Eleito prefeito de lpiaú, Bahia, realiza ali, no inicio dos anos 60, a primeira experiência socialista de distribuição da terra e do trabalho. Na “Fazenda do Povo” foram assentadas dezenas de famílias de indigentes, desempregados, desiludidos, abandonados, perdidos, doentes. Ainda hoje, muitas dessas famílias sobrevivem dignamente, em função daquela bem sucedida experiência. A “fazenda do Euclides” continua gerando emprego para os netos dos primeiros agricultores que ali trabalham há mais de três décadas. Em 1964, ano do golpe militar, Teixeira Neto foi processado e punido por ter desenvolvido aquela experiência.

                Advogado e agricultor, nascido e criado na região cacaueira da Bahia, Teixeira Neto conhece como poucos pelo menos dois ecossistemas importantes, complexos e, ao mesmo tempo, frágeis: a Caatinga e a Mata Atlântica, além de contar com uma vasta experiência sobre a vida, a natureza, as relações sociais e afetivas dos seus habitantes – o seu povo. Garimpo de ricos personagens, a Bahia é o estado onde se concentram os maiores e mais graves problemas sociais, particularmente rurais, do Brasil. Autor de mais de uma dezena de livros, o romancista e articulista de boa escrita foi também Secretário de Reforma Agrária e Cooperativismo do governo da Bahia, quando teve a oportunidade de demonstrar o seu apego à terra e ao homem do campo, tema de encanto em seus livros.

 

                Ops tem o raro privilégio de apresentar uma história entrevista.

 

                Ops – Gostaríamos de que o Sr. falasse das reformas agrárias que obtiveram sucesso. Como o Sr. poderia avaliar essas experiências em alguns países que obtiveram um certo desenvolvimento, tanto do ponto de vista econômico quanto social?

 

                                           “Não há país desenvolvido – ou que esteja experimentando um bom processo de desenvolvimento – com solos abandonados,"

 

                Teixeira Neto – Sei muito pouco da parte teórica. O que eu entendo razoavelmente é da prática, mas vamos lá. O desenvolvimento capitalista dos EUA está na moda, muitas pessoas desejando copiá-lo. Mas elas não se lembram de que o crescimento se deu após a Lei Lincoln, de 1867. Há bem mais de um século, o agricultor não podia receber mais de 76 hectares. Jamais se permitiu o latifúndio improdutivo. Após a Segunda Guerra Mundial, o general americano MacArthur promoveu a reforma agrária no Japão; dai o seu crescimento, tornando-se outro modelo para muita gente.

                A Itália começa a se desenvolver após a correta distribuição de seu solo, que se baseou no aumento dos impostos sobre as propriedades de terras improdutivas. Até mesmo a Índia foi por caminho semelhante. Enfim, não há país desenvolvido – ou que esteja experimentando um bom processo de desenvolvimento – com solos abandonados. No Brasil, assim como a abolição da escravatura, a reforma agrária chega como indesejável, sobretudo porque foram os comunistas que a defenderam desde a década de 20, muitos indo parar na cadeia. Aqui, a reforma agrária é uma luta que perdura até o presente, sem os avanços desejados. Um senador pelo estado do Acre chega se dizer dono de cinco milhões de hectares de terras improdutivas; e cerca de vinte fazendeiros de São Paulo declaram serem eles possuidores de um milhão de hectares cada um. É daí que vem a força da bancada ruralista, no Congresso Nacional, que atravanca toda e qualquer solução. Agora, a UDR, que parecia em coma, retorna com forças de um outro poder da República. Às vezes, pergunto: qual a razão de tanta resistência à reforma agrária no Brasil? Acredito em que ela se tornou mais fácil nos outros países porque até os seus banqueiros, comerciantes e industriais perceberam que a reforma agrária é uma grande fonte de riqueza, contribuindo para o aumento dos depósitos bancários, das compras no comércio varejista e de matérias-primas pelas indústrias, beneficiando a todos. Já no Brasil, eles (bancos, indústrias, comerciantes, inclusive os empresários da mídia) têm imensas extensões de terra para ocupação; essas terras são conservadas como bem de capital, esperando valorização. Chego até a pensar que isso tudo pode ser um resquício da resistência inconsciente à abolição da escravatura.

                Historicamente, a notícia da reforma agrária vem dos anos 446 a.C., quando houve muitos projetos de lei apresentados pelos senadores romanos. Projetos aprovados e revogados, com seus autores condenados à morte pelos patrícios, donos das terras. Caio teve a cabeça posta a prêmio pelo seu peso em ouro. Quem o degolou encheu o crânio com chumbo para ter melhor compensação. César, no entanto, no ano 39 a.C., quando a população do mundo era irrisória, assentou cem mil famílias sem terras e desocupadas; já o governo brasileiro prometeu abrigar, este ano, oitenta mil, enquanto quatro milhões de famílias de lavradores lutam por terras.

                Por que essa resistência? Querem a terra, um bem essencial ao homem, também como uma espécie de feudo capaz de garantir poder econômico e de armas. Tenho conversado até com psicanalistas, aprofundando a questão pelo lado subjetivo. Não encontro resposta. Além do mais, toda a agricultura brasileira está em crise. Não serve mais nem para tomar empréstimo barato. Por que não vendem as áreas improdutivas, ou mesmo as plantadas, e aplicam o capital em negócios mais lucrativos?

                Dom Fernando, o Formoso, em Portugal, fez reforma agrária no ano 375. Antes de descobrir o Brasil! Dava a terra ou emprestava; se o agricultor não a lavrasse, era obrigado a devolvê-la com a multa de uma junta de bois. Havia até uma pena! No Brasil, ao contrário, dificultam-se as desapropriações e os ruralistas ainda querem receber mundos e fundos.

                Desde o tempo de José Bonifácio que se tenta fazer a reforma agrária. Em 1946, Nestor Duarte também o fez. João Goulart não caiu porque pretendia mudar a lei da remessa de lucros para o exterior, ou devido à inflação, ou ao comunismo. Ele foi derrubado porque anunciou que faria a reforma agrária.

 

                Ops – Hoje, com a tensão social no campo, discute-se que, do ponto de vista econômico, o Brasil, através de um processo de modernização conservadora, conseguiu superar o problema da oferta de alimentos. Para onde foi toda aquela discussão da década de 60, de que a reforma agrária iria acabar com os pontos de estrangulamento na economia brasileira – aumentar a oferta de alimentos e acabar com a inflação? O que se discute hoje é que o Brasil tem nichos de mercado no Sul e Sudeste em torno, inclusive, da agricultura familiar. Nichos industriais integrados com multinacionais e capital avançado. Com esse modelo, o Brasil tem conseguido uma oferta elevada de grãos e tem alimento para abastecer a população. A política de reforma agrária tem que pensar em produzir alimento, mas ela não seria mais uma necessidade social do que econômica, diante do processo de exclusão e concentração fundiárias?

 

                Teixeira Neto – Regime político ideal será aquele que não tiver um desempregado. O fundamental em qualquer governo, tenho escrito há mais de 40 anos, é o emprego e a comida. Prioridades absolutas. Até mesmo antes da educação e da saúde. As pessoas se chocam quando ouvem isto. Evidente que não sou contra a saúde nem a educação, mas elas devem vir paralelas. Se perguntar a um cidadão encontrado debaixo da ponte, com a mulher e oito filhos, que saiu da roça e chegou à cidade: “Que você quer?". Ele dirá: “Estamos com fome queremos comer”. Não responde que quer educação e saúde. Se lhe der comida e inquirir novamente. “Que você quer?”, ele dirá: “Uma morada”. Outra prioridade. Em terceiro lugar, você pergunta: “E agora? Você tem comida, tem morada, que você deseja?”. “Preciso de emprego”, É para essa gente que o sistema tem de se voltar; são trinta e dois milhões de abandonados, adoecendo o país. Quando se pensa na grande produção, na viabilidade econômica, preocupo-me com a viabilidade social. Não adianta as grandes empresas produzirem oitenta e cinco milhões de toneladas de grãos, se os abandonados não trabalham e, consequentemente, não ganham dinheiro para comprar. Como também não se resolve o drama social desempregando pessoas, substituindo-as pelas máquinas, envenenando o meio ambiente com agrotóxicos proibidos lá fora.

                Há cerca de quinze anos, o Oeste do Paraná aglutinou áreas e máquinas e expulsou mais de um milhão de estômagos. Essas pessoas foram ocupar a periferia das grandes cidades, onde está grande parte de desempregados, empunhando armas pela sobrevivência. De que adiantaram o lucro, as grandes produções e somente a eficiência econômica, se essa gente toda ficou na estrada sem comida, morada e trabalho? Em que resolve fabricar álcool, ou açúcar, sempre pensando em modernidade, competitividade e produtividade para exportar, se a miséria aumenta? Agora mesmo milhares de trabalhadores estão sendo desempregados em São Paulo porque, com a tecnologia, descobriu-se uma máquina de cortar cana.

“Conheço meninos na lida aos três anos de idade. Garoto trabalhando? Sim, senhor! Ele conta três caroços de feijão e tapa a cova. Menino não pode e nem deve é quebrar brita, labutar em carvoaria, cortar cana, explorar cobre em túneis.”

                As pessoas estão voltadas para o que se chama de primeiro mundo, PIB a qualquer custo, primeira potência mundial, globalização. Mas a reforma agrária é a maneira mais fácil e mais barata de se gerar empregos. Enquanto um emprego na grande indústria da cidade custa cem mil dólares, o assentamento de uma família no campo custa apenas dez mil dólares, desde que sem corrupção. Os que são contra a reforma dizem: “Nós queremos uma reforma agrária como foi implantada em Israel”. Essa colocação tanto existe na extrema esquerda inconsequente quanto na outra ponta, da direita, paradoxalmente. Porque a extrema direita, não querendo que se faça a reforma, afasta-se da realidade brasileira, pelo que inviabiliza o trabalho. A extrema esquerda, ainda que bem-intencionada, fica no sonho do ideal irrealizável. Claro que todo trabalhador tem direito à luz elétrica, estradas boas, tecnologia avançada. Mas se o governo não pode ou não quer dar isso, então nada faremos? Na impossibilidade de um hospital sofisticadamente instalado, não se monta um mais modesto? Quando não se pode dar lagosta ao faminto, não se dá somente feijão com farinha?

                Pretender copiar Israel é tolice, porque: a) existe, em todos os bancos do mundo rico, alguém ligado ao heroico país – crédito; b) o mesmo se pode dizer das universidades – tecnologia; c) a vontade de ser bem-sucedido para mostrar aos outros povos – ânimo. E no Brasil? Não temos crédito nem tecnologia, muito menos vontade.

                Em Israel, para ser assentado, um trabalhador comum leva dois anos estudando agricultura com os técnicos, permutando saber e experiência. Sabemos que existem duas ciências: a dos compêndios, do quadro-negro e do discurso e a da enxada. Então, não podemos esperar que as universidades formem técnicos aptos para lidar com a reforma agrária. Na Bahia, tivemos problemas até na área da saúde: os médicos não queriam dar assistência às famílias dos assentados. E foi durante um governo comprometido em fazer reforma agrária, empenhado no trabalho! Alguns prefeitos nem encostavam. Não sabiam eles que, se muitas famílias produzissem na terra, o seu município teria mais emprego, menos fome, mais habitação, menos doença. Que numa área, em Angical, onde foram desapropriados 54 mil hectares improdutivos que faziam parte de um latifúndio de mais de 300 mil hectares, onde não se plantava nada (criavam-se algumas reses como bichos selvagens, abatidas a tiro), 5 mil viventes passaram a trabalhar, morar, comer e comprar no comércio. E ter perspectiva de bem-estar. Com vantagens: na cidade, normalmente, só o chefe de família trabalha; na roça, todos engordam o ganho. Conheço meninos na lida aos três anos de idade. Garoto trabalhando? Sim, senhor! Ele conta três caroços de feijão e tapa a cova. Menino não pode e nem deve é quebrar brita, labutar em carvoaria, cortar cana, explorar cobre em túneis. Ruim é virar pivete nas sinaleiras, aprendendo a roubar e assaltar, enquanto na roça, além do professor das letras, aprendem com os pais, os avós, sábios no eito. Com licença dos doutos, é o que chamo capital-trabalho da família. É a energia dos braços de quem não dispõe de óleo diesel, eletricidade, tratores, crédito.

 

                 Ops – O Sr. até já avançou numa pergunta que havíamos previsto, que é justamente a seguinte: será que existe sintonia entre institutos de pesquisas de desenvolvimento agrícola com a cultura, a tradição, a técnica propícia ao agricultor familiar? Toda a concepção passou a ser formulada para acompanhar o avanço tecnológico da revolução verde... Ocorre-nos agora uma outra questão: além do essencial, como o Sr. bem ressaltou, comida, casa e emprego, como é que nós podemos, pensar na inserção dessas áreas de assentamento no mercado, incorporando, inclusive, um ganho de renda adicionai além do próprio autoconsumo?

 

“Com o neoliberalismo, a cabeça das pessoas está voltada para a globalização; mas pode ser preferível um país menos rico, sem fome e com menor concentração de renda”

 

                Teixeira Neto – Refiro-me às vantagens da agricultura familiar que levou Swaminathan a fazer, na Índia, com a reforma agrária e a revolução verde, um estoque de 50 milhões de toneladas de grãos, igualando-se ao do Mercado Comum Europeu. Com várias advertências, inclusive a de que o lavrador deve ser bem remunerado e, na medida em que o governo importa alimentos, concorrendo com os de casa, surge o desemprego e desestimula a produção, o que redundará em prejuízo no futuro.

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ipiaú-BA (1925-2000).