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Enquanto é tempo

Euclides Neto

Tribuna da Bahia - Salvador - BA - 1995

 

 

 

                Seria aconselhável que o governo aproveitasse, com a reforma agrária, enquanto é tempo, os que arriscam a própria vida nas ocupações de terras improdutivas. Lutam para trabalhar na roça, onde pouca gente quer morar, sobretudo sem comida, emprego e chão para plantar.

                Na década passada, nosso estado sofria o segundo lugar entre os mais violentos da Federação. Primeiro, o Pará. Os sem-terra eram espancados, presos, assassinados. Durante dois anos e meio fomos bombeiros. Quando surgia alguma fumaça anunciando fogo, organizávamos pequena comissão, composta de um funcionário da Secretaria da Reforma Agrária, outro da Fetag e um terceiro que representasse o que se dizia proprietário. Se este não comparecia, seguiam os dois primeiros. Mais das vezes fomos pessoalmente.

                Apagamos muitos incêndios. Ora negociando, ora descobrindo que as terras eram do domínio do estado, e, portanto, podiam e deviam ser ocupadas pelos que nela queriam labutar. Ora sugerindo ao Incra a desapropriação. Sempre áreas improdutivas, os trabalhadores não ocupavam as que cumpriam a função social.

                Evidente que houve incompreensões, ameaças de morte contra o secretário e funcionários. Éramos recebidos muitas vezes com escopetas e fuzis. E ouvindo dos jagunços: se der mais um passo temos ordem de atirar!

                Já no fim, verificamos que, apesar de defendermos os trabalhadores e, em favor deles, procurássemos a melhor solução para os impasses, as ocupações diminuíam sensivelmente, chegando quase a zero.

                Perguntamos a razão daquela paz a um dos líderes do movimento. Respondeu-me que muitos já estavam assentados, cuidando das suas glebas e não precisavam mais matar ou morrer por aquilo que já tinham conquistado.

                Sem-terra só ocupa em extremo estado de necessidade, para plantar comida, morar e trabalhar. Quando o sem-teto “invade” uma área urbana, por carência também, pode ser preso, espancado, expulso, mas não joga a vida. O sem-terra, não. Muitos morrem, inclusive filhos e companheiras.

                Agora leio notícia das ocupações no Pará, São Paulo e por aí afora, com mortes de policiais (também trabalhadores em estrito e triste cumprimento de ordem superior) e massacre de trabalhadores. Estes reagindo com instrumentos de trabalho e espingardas velhas. Pergunto o motivo pelo qual não se aproveita, enquanto é tempo, repito, os que enfrentam até a morte para ficar na roça. Antes que tal vontade e determinação desapareçam e prefiram ir para as capitais. Aí, sim, trabalhando com armas importadas nos eitos dos assaltos e guerrilhas urbanos. Dando maiores despesas, semeando a violência. Já sem qualquer motivação para o trabalho produtivo. Poucos pensam nesse outro lado da medalha. Preferem julgar os sem-terra como criminosos.

                Daqui a pouco não existirão mais os que ainda queiram a vida dura do campo. O que será muito pior para todos. E irremediável.

 

 

ilustração: Adrianne Gallinari
Euclides Neto
Euclides Neto: Escritor, advogado e político da região de Ilhéus (1925-2000).